Os Trabalhos e os Dias – parte II
Aquela semana foi de muito sol sobre a Barão de Itapetininga e sobre a gente, a mesma gente que eu reconheço em cada agência, atrás das mesmas vagas – copeira, auxiliar de cozinha, operadora de telemarketing, motorista. Ouço estarrecida a oferta humilhante de trabalhadores que, como disse Viviane Forrester no seu livro O Horror Econômico, pedem a simples licença para existir, o que no capitalismo significa “dar lucro a alguém”.– Meu senhor, a gente está procurando alguém que more na zona norte!
– Mas eu moro em Pirituba, eu me viro, não tem problema!
– E qual a sua pretensão salarial?
– Oitocentos.
– Ah, mas o salário é 450…
– Tudo bem, eu aceito…
Fora os milhares que, como eu, são dispensados já na porta da agência pela pergunta maquiavélica: “Tem experiência de dois anos registrada em carteira?”
Não tenho muita simpatia por estatísticas. Elas tentam colocar um sem-número de angústias, vergonhas, desesperos, em números. Em maio, uma pesquisa do CNT/Census revelou que 41,3 por cento dos 2.000 entrevistados consideram o desemprego o maior desafio do presidente Lula, contra 36 por cento da violência. No mês seguinte o Ibope apontou que a maior preocupação dos eleitores paulistanos, 66 por cento deles, era o desemprego. Forrester, uma francesa que nem botou os pés por aqui, coloca de forma melhor: pesa sobre os ombros de cada desempregado a vergonha pelo próprio desemprego. E, irônica: “A vergonha deveria ter cotação na bolsa: ela é um elemento importante do lucro”.
A vergonha bate na semana como ressaca. De agência em agência, a esperança bate ou foge, dependendo de um sorriso ou uma grosseria maior. O desespero – “não vou conseguir” – pra mim, que quero só escrever uma matéria, ainda é infinitamente menor. E a pergunta de Forrester, “há angústia maior que a esperança?”, ecoa e se multiplica em cada “não” que recebo. E reflete no rosto de Eliana, uma baixinha morena de belos olhos verdes que conheço numa agência de serviços domésticos. Ela, despedida do serviço de acompanhante de uma idosa porque foi morar com o namorado – a velhinha não gosta disso. Envergonhada, diz que também “não é tão mau assim”: até conseguiu serviço em outra casa, mas saiu sem olhar para trás quando, depois de dias fazendo vezes de faxineira, copeira, cozinheira e arrumadeira – o emprego oferecido era apenas arrumadeira –, foi mordida pelo cachorro, que “abriu um tanto da minha perna”. A patroa deu risada.
Na saída toca o celular: é de uma agência de empregos. Do outro lado da linha, dispara:
– Você se interessa por uma vaga de operadora de telemarketing? São mais de cem vagas, pagam de 380 a 600 reais, dependendo da firma.
– Claro que topo!
– Bom, você foi selecionada. Agora é só trazer amanhã o seu RG, CPF, carteira de trabalho, comprovante de residência e o valor da primeira parcela para o curso de treinamento, no valor de 49 reais.
– Como assim, primeira parcela?
– É para o curso, que dura cinco dias, e o valor é de duas parcelas de 49 reais, a segunda descontada já do seu primeiro salário.
– Como assim? Tem que pagar para ter um emprego?
– Olha, a vaga já está garantida, mas o curso vai estar dando todas a ferramentas…
– Esquece.
– Certeza?
Certeza. Pensando bem, nunca estive na tal agência. Agora sei, pelo menos, para onde vão os currículos atirados nos caixotes de papelão na Barão. O desânimo aumenta com a chuva que molha, lava, derruba e pára a cidade. É quando toca o telefone, uma luz: currículo selecionado, auxiliar de cozinha, amanhã às 9 com documentos.
No bufê espero num balcão quando sai da entrevista uma mulata, cabelo alisado e sorriso satisfeito. No início antipatizo com minha rival, mas depois, ora!, afinal, quem é essa mulher? Ela é Denise, 27 anos, ali pela vaga de passadeira na lavanderia (450 reais), embora metalúrgica por formação. “Então é colega do presidente?”, brinco. “Tá bem de vida.” “Nada. Foi o tempo em que metalúrgico era respeitado. Agora, a gente ganha 380, 400 reais.” Do último trabalho, na carteira como temporária, foi mandada embora na primeira crise de produção, junto com dezenas de colegas. Agora é se virar, e danem-se mais de sete anos de experiência nas costas. (A tendência é explicada por Ricardo Antunes, professor da Unicamp, como a “nova cara do trabalho: a indústria contrata cada vez menos e produz cada vez mais; a produção se flexibiliza, incorporando desempregados, que voltam para a rua assim que cai a produção”). Bem-humorada, ela brinca com o fato de ser considerada velha demais aos 27: “Agora, nem pra vender eu sirvo mais, eles querem meninas de 18 até 25 anos!”
Na cozinha, uma moça loira, gordinha e decidida diz que não precisa ter experiência, basta vontade de aprender e disposição de ficar até tarde, porque no fim do ano as encomendas dobram: “Muitas festas, sabe, e a gente tem de dar conta do serviço”. O esquema é 6 x 1, o que significa que só folgamos no domingo, enquanto as horas extras são amontoadas num “banco de horas” que dá direito a folga, depois. O salário, 400 reais – 330 com os descontos. Agradeço a oportunidade.
Terça seguinte, acordo às 6h30. Um ônibus só, se bem que leva mais de hora e meia, e aproveito para dormir. O mesmo fazem os outros passageiros nessa terça pós-feriado da República. Chego no trabalho, visto avental e touca branca no banheiro dos empregados, um pardieiro: roupas penduradas, o chão lodoso, a privada suja, o armário de ferro entulhado de aventais. Tudo fede a mofo, urina, umidade. Debruçada sobre uma pia pequena e mirando-se no espelho quebrado, encontro uma belíssima Maristela, 30 anos, branca de belos olhos castanhos, que tenta a custo enfiar os cachos negros na touca. Está atrasada e irritada. Contratada há três meses, só pensa em sair dali.
– Isso aqui é escravidão, ninguém tem hora de ir embora, não. Demorou um mês com dor no corpo todo até eu acostumar a ficar de pé o dia todinho…
– Quando o corpo acostuma – pergunto – é que a gente ficou mais forte ou mais fraca?
– Mais fraca, fia, mais fraca.
Destoando do nosso “cantinho”, a cozinha é linda e limpíssima, toda azulejos brancos e mesas de madeira, pilhas e pilhas de fôrmas de bolo, assadeiras, potes, panelas, mais fornos e geladeiras industriais. Cinco mulheres vestidas exatamente como eu (Fernando Braga, o psicólogo que realiza uma pesquisa na USP trabalhando como gari uma vez por semana, observa que “o uniforme uniformiza”, tira a individualidade para transformar todos em “funcionários”), entretidas em sovar a massa, conversam pouco. Me atrapalho na primeira tarefa, peneirar uma bacia enorme de farinha de rosca, que leva duas horas e algumas câimbras para terminar. E a simpática Néia me ensina o próximo serviço, fazer mil-folhados de presunto (na verdade, apresuntado), abrindo o rolo de massa, espalhando o recheio, fechando apertado para não vazar, cortando em cubos e levando ao forno. E repetir, repetir, repetir.
O suor escorre pelo rosto, os braços doem e as histórias de Néia me embalam. O filho de 3 anos, cujo pai “assumiu e sumiu”, fica com a mãe enquanto ela trabalha até as 10 horas, às vezes até perde o trem. Filha de baianos, o sotaque nordestino que se confunde com o das outras, já trabalhou na cozinha de um restaurante por quilo, já foi faxineira, fez de tudo um pouco. Mas ficar longe do filho tão pequeno dói. As outras, também, cada uma dá um jeito com os filhos – são cunhadas, avós, tias, parentes, os filhos mais velhos cuidando dos mais novos – e a saudade é unânime naquela cozinha.
Em pouco tempo, a mesa central vai sendo coberta por travessas cheias de enrolados, esfihas, folhados, docinhos, salgados, pães, tudo douradinho e cheirando um absurdo, e a fome é maior porque não podemos comer nenhum. Pior: nosso almoço é uma marmita fria e murcha – arroz, feijão, frango, polenta. O almoço feito na hora foi banido porque as cozinheiras estavam “mimando demais” os funcionários, fazendo um menu diferente a cada dia. Não há humilhação maior, penso, do que terem de engolir essa gororoba sendo, justamente, cozinheiras de mão-cheia.
Nem vinte minutos depois, retomamos o serviço. Quando afinal batem 6 horas, já não me aguento em pé e mal consigo disfarçar. Maristela brinca comigo: “Ih, tu é fraquinha, não aguenta ficar até 10 horas da noite, não”. Mas a supervisora diz que eu posso voltar amanhã, é só antes passar na agência e assinar contrato, levando a minha carteira de trabalho. Não volto.
De novo na rua, chama a atenção um cartaz escrito à mão: “Precisa-se moças com ou sem experiência”. Ligo para o número, e um carioca me explica que é pra fazer bijuteria na casa dele: “Já tenho muitas moças trabalhando pra mim”. É na Liberdade, a “Chinatown” paulistana, próximo à baixada do Glicério, no Centrão da cidade. No número 13: mau presságio.
Chego lá e o tal me recebe de camisa aberta e corrente no pescoço, olha de cima a baixo e chama o menino: “Leva ela até a montagem”. E pra mim: “Diz pra patroa que eu mandei ela pegar você”. Atravessamos a rua até um predinho baixo, de corredor escuro, pintura descascando e lixo por todo canto. Uma placa avisa: “Favor não cuspir no chão”. No primeiro andar, a porta está rabiscada: “Favor não arrombar, se esqueceu a chave bata e espere”. Mas é no segundo andar que uma porta de madeira esconde mulheres sobre mesas improvisadas, forradas de colares, peças coloridas de plástico, fios. A patroa – é assim que todas a chamam – vem me receber, os cabelos desgrenhados, calça florida e uma camiseta branca, baforando um cigarro. “Ah, ele te mandou? Então vem, fia. O trabalho é fácil, começa as 8 da manhã e eu vou precisar que fique até tarde. Domingo tem folga…” As janelas fechadas, tacos soltos no chão, as paredes rabiscadas por lápis de cor, e entramos num quartinho onde seis rostos de meninas me olham, curiosos. É onde vou trabalhar. Elas são negras, mulatas, os cabelos crespos, as mãos rápidas, os rostos jovens. A janela que dá para a rua está coberta por um papelão e a fumaça de muitos cigarros nubla o ambiente.
A patroa explica que no fim do ano tem muita encomenda (é a tal “dinamização da economia” que festejam os jornais), então vai ter muito trabalho. Ela paga condução, mas tem de levar marmita. Pra cada dúzia de conjunto (doze colares e 24 brincos), ela paga 1,50 real.
Dia seguinte chego cedo, entro no apartamento que está um carnaval de contas, pedras, pingentes, fios coloridos no chão, que uma menina varre rapidamente. Meu lugar é ao lado de uma negra baixinha e gordinha, a Raquel, “negona” minha companheira de cigarros e de histórias. A patroa – “mulher, baiana e leonina, com orgulho” – está irritadíssima, faltam ainda duzentos colares para fechar uma encomenda pra meio-dia. Quem me ensina o serviço é Shirley, com dois brincos enormes de semente, camiseta justinha, batom, uma princesa de 21 anos. Cortar os fios de selonite, amolecer em água quente, prender o fecho com alicate, e seguir a ordem, bolinha prateada, pedrinha verde, caninho verde, mais uma pedrinha, mais um caninho, pingente, pedrinha, caninho, bolinha. Vou seguindo como posso, é verdade que sou bem mais devagar que as outra e minha mesa é uma bagunça. Ao som dos berros da patroa:
– Suas lerdas!
Quando termino a primeira dúzia de colares e brincos verdes, já são 10 e meia: 1 real e 50 ganhos. Desisto totalmente de contar o êxito à patroa porque acaba de chegar uma funcionária:
– Sua vaca peituda! Isso é hora?!?! Fazer isso comigo justo hoje, sua vagabunda! Te mato! Já te xinguei tanto aqui! Me deixar na mão assim…
Vilma conta que dormiu no ônibus, acordou no ponto final:
– Tô muito cansada, ontem a gente saiu daqui era mais de 11 hora!
A patroa cala, mas bufa. E eu decido ficar de boca bem fechada, que a menor frase minha já destoa, como: “Por favor, me passa um pouquinho de pedras verdes?” Em vez de: “Ô, na humildade, arranja umas pedra aí”. Não que eu seja mais ou menos educada: são aprendizados diferentes, o do asfalto e o da favela.
De todas, eu sou a mais velha. Raquel ao meu lado tem 24 anos; na minha frente estão as irmãs Milca, 21, e Bitcha, 17; de costas para a janela fica Naiara, a sobrinha da patroa, de 14 anos; do outro lado, Karen, 22, de touca da Gaviões da Fiel e “sangue nos óio”, tem 21. No primeiro contato, ela me aperta:
– Vem cá, tu já puxou cadeia, né?
– Não, mas conheço – arrisco.
– Tem cara.
Terminada a encomenda, sai a patroa, ligamos o som. Alguém trouxe um saco de pão e me ofereço para comprar margarina. Manteiga, nem pensar. Cada real é economizado, pra gente não acabar gastando o que ganha – dia de gastar é domingo; semana é dia de ganhar. Tomamos água da torneira, o cigarro, Kent, é dividido, o cartão telefônico também. Quando batem 6 da tarde, minha cabeça dói por causa dos muitos cigarros; a palma da mão dói por causa do alicate, os ombros, principalmente, e as costas. Consegui fazer quatro dúzias: 6 reais. É com alívio que ouço o berro da patroa:
– Manda a Natalia ir pra casa, que eu tô com a passagem dela.
Raquel, sempre bem-humorada:
– Só ela?
Dia seguinte é tudo diferente. A patroa não está e a casa fica nas nossas mãos. Ouvimos, volume máximo, à Rádio Sucesso, que repete o refrão de Zeca Pagodinho: “Você sabe o que é caviar? Nunca vi nem comi, eu só ouço falar”. Perfeito para embalar o almoço que a Shirley divide comigo – cozinhou um tanto demais na noite anterior, foi o sono. O menu: arroz, feijão e macarrão, tudo misturado. Caviar?
Negona nos entretém contando como foi “pega pelos homi”, quando trabalhava para o “partido”. Numa central do PCC, ela, duas meninas e muito pó, enquadradas pelos policiais, teve de desembolsar 7.000 pra se livrar.
– Parei com o crime ali.
Mas ainda flerta: mora com a sobrinha, traficante por formação – na Febem dos 4 aos 12 –, a “bicha”, que por algum se prostitui, o namorado, funcionário de um fast-food, que “faz uns corres” de vez em quando.
Vou fazendo meus colares, rosa, vermelho, azul, e ouvindo. Naiara, a cabeça cheia de cachaça e vinho San Tomé, fala sem parar:
– Mó brisa, mano, tô brisada!
Ela conta que a mãe costumava bater a sua cabeça na parede quando ela dedurava ao pai as escapadas noturnas – a mãe se prostituía escondido. Como naquela noite em que entregou a filha a um homem: “Faz o que ele mandar”. Naiara tinha 8 anos. Na lembrança, ela grita, ri, gesticula nervosamente. Promete que vai matar a mãe. Está “brisada”.
Quase todas cumpriram o 1o grau, já tiveram outros empregos. Milca foi auxiliar administrativa, Negona era acompanhante de idosos, Vilma trabalhava no Extra. Procurar trabalho, antes de encontrar a “patroa”, foi difícil: ninguém queria pagar condução, o que significa um gasto a mais de no mínimo 70 reais por mês. A patroa explora – cada conjunto é vendido a 1 real em pontos na 25 de Março e na Santa Ifigênia, no centro da cidade –, mas pelo menos paga a ida e volta.
É no terceiro dia que decido ir embora. Mas especificamente às 11 horas, quando chega a patroa e avisa que seremos todas revistadas diariamente, além do que trabalharemos “de domingo a domingo”. Mais especificamente quando, depois disso tudo, ela encontra uma porção de fios que eu cortei mais curtos do que devia:
– Quem foi que cortou esse monte de selô errado, que eu tô com vontade de comer o cu!!!!
– Olha, patroa, espero que a senhora não coma o meu cu, mas fui eu – respondo, e de alguma maneira a minha fala deve ter impressionado, porque ela não retruca agora nem quando aviso que consegui outro trabalho, numa loja de calçados.
– Bom pra você, minha filha
Nem fui chamada de vaca nem nada, e ainda ela me diz para voltar outro dia, buscar meu dinheiro. O total – 22,50 reais, que no terceiro dia consegui fazer cinco dúzias – jamais foi resgatado, e é com pena que digo que ficou com ela. Meu gosto era ter dado para a Negona, que se despediu emocionada:
– Não esquece das irmãs bijutera aqui, não, se tiver uma vaga na loja…
Quando contei a saga das “irmãs bijuteras” para Ricardo Antunes, ele não teve outra palavra senão “escravidão moderna” para classificar o serviço. Assim: “É tão brutal a precarização do trabalho em escala global, que o trabalho assalariado volta ao patamar que tinha antes da Revolução Industrial”. O salário baixíssimo – a que mais ganha não passa dos 350 reais, fazendo no máximo nove dúzias por dia –, as condições insalubres, o fato de elas não decidirem quando descansam, nem até que horas ficam. Tirando uma ou duas com passagem na polícia, não entendo por que elas continuam ali. Nenhuma resposta me convence. “Isso, pra mim, é uma terapia”, diz a Milca. “Me encontrei aqui”, lança a Vilma.
A resposta, mesmo, só vem mais tarde, quando me despeço falando do trabalho assinado em carteira. A surpresa geral, o silêncio, tudo indica que aquilo é algo mais distante delas do que previra. A sentença final vem da boca da Vilma:
– Mas tem certeza que é trabalho mesmo? Será que eles não querem só o seu currículo? Olha lá, depois a patroa não vai te querer mais.
Medo. Lição número quatro.