Disciplina - Sociologia

Os Trabalhos e os Dias – parte III

O relatório “Perfil da Juventude Brasileira”, parceria entre o Instituto Cidadania, Instituto de Hospitalidade e Sebrae publicado em abril, quantifica: 52 por cento dos entrevistados (3.500 jovens entre 15 e 24 anos de todo o Brasil) temem seu futuro profissional. E vinte por cento acham que o pior de ser jovem é a falta de emprego ou renda, resposta espontânea mais mencionada. O medo reflete uma realidade: dos que trabalham, 37 por cento não tem registro, 16 por cento vivem de bicos ou empregos temporários. Dos desempregados, que são 32 por cento, um terço procura trabalho há mais de um ano. Para as minhas colegas bijuteiras, medo que acorrenta a uma salinha fechada, escura e fedorenta, mais de doze horas por dia.
Nesses dias não parei de procurar, aqui e ali, um trabalho temporário para o Natal. O comércio fervia – foram 35.000 postos criados desde setembro – e me sorria com um cartaz dizendo: “Você quer vencer na vida? Venha fazer parte da nossa equipe!” A loja de sapatos da Teodoro Sampaio, agitada rua comercial da cidade, pagava 5 por cento sobre o que eu vendesse, e mais nada. Nem o transporte.
Começo numa sexta-feira de sol, 26 de novembro, quando todos os jornais trazem a boa notícia que o desemprego atingiu em outubro o menor índice em quase dois anos – 10,5 por cento, ou 2,3 milhões de pessoas, segundo o IBGE. É verdade que a renda média caiu 1,2%, mas isso é detalhe. Chego à vitrine cheia de variados sapatos, tênis, chinelos, botas, e sou mandada para o fundo da loja, esperar ao lado de duas meninas tão ansiosas como eu. Que o supervisor vai falar com a gente, já está a caminho. Dentro da loja é um corre-corre, dezenas de vendedores com a camiseta verde, uniforme da loja. Os dois gerentes continuam nos ignorando, vez ou outra passam, confabulando. Pesco uma frase: “Ah, é assim? Então boa sorte pra ele, tem um monte de gente querendo a vaga dele…”. Esperamos. Esperamos. Esperamos.
Até as 16 horas, quando finalmente o tal do superior dá o ar da graça. Explica tudo de novo – 5 por cento, das 8 às 18, marmita, temporário, entusiasmo etc – em cinco minutos, preciosos simplesmente porque ele é um supervisor, portanto, superior aos nossos superiores. E nos manda para o estoque. Que é um pesadelo.
Na sobreloja, uma estreita sala, com uma mesa de madeira, serve de refeitório, enquanto o banheiro sujo com só um vaso é a área privativa onde os vendedores se trocam. Um grande filtro fornece água – que é descontada dos salários, 2 reais de cada vendedor por semana. Nas salas ao lado, o estoque: um enorme labirinto escuro de caixas, amassadas, abertas, coloridas, velhas, novas, empilhadas pelo caminho, onde couberem, o cheiro de sapato novo ardendo o nariz. Tênis, sandálias, sapatos sociais, infantis: o desafio, aqui, é saber onde está cada sapato, e pegar rápido o número certo antes que o cliente se aborreça. Por isso, ficamos horas ali, decorando a posição de cada marca. Antes de ir embora, nossas bolsas são revistadas.
A regra da gerência é incentivar a competição: os vendedores têm de ficar na calçada, “cantando” os potenciais clientes. “Quem chegar primeiro, o cliente é dele.” Palavras do supervisor.
Dia seguinte, último fim de semana de novembro, deve vender bem. Chegamos 7 e meia porque tem reunião. Os dois gerentes só chegam às 8h15, mas ninguém ousa reclamar porque vem chumbo grosso: encontraram três pares de tênis no saco de lixo, ontem. O menorzinho, de gel, começa:
– Tem um ladrão entre nós.
E tira do balcão pares de Nike, Topper, Kolosh, as marcas mais caras. O larápio pretendia recolher assim que o lixo fosse para a rua, e por isso:
– Vou ter que descontar do salário de todo mundo!
Os sapatos ali, na nossa frente. Protestamos.
– Só porque eu achei, então deixa de ser roubo? Não! Vou descontar! – ele grita, e a soma é de 14 reais para cada, um dia de trabalho.
Mas o pior ainda vem: os tênis, ele diz, vão ser cortados ali, na frente de todo mundo, e queimados. Parece que é a regra da empresa, confesso que ainda não entendi bem o raciocínio. Mas, quando começo a falar que isso não tem outro nome que injustiça, recebo um cala-boca:
– Olha, vocês três são novas, não vão ser descontadas.
Assim, o menino de gel mostrava como abraçara a lógica do patrão como forma de ganhar um salário pouco menos de fome que os outros, na condição de gerente. Fiquei quieta. Fiquei quieta, ainda, quando pouco depois o gerente nos contou que esqueceu de pegar as nossas camisetas no escritório, e assim não poderíamos trabalhar. Fiquei quieta, ficamos quietas as três, e fomos embora, sem ganhar nada pelo segundo dia consecutivo e, ainda, tendo as minhas duas companheiras pago pelo transporte. Um funcionário mineiro nos consola, que essa semana ganhou 36 reais e gastou 50, quer voltar pra Minas:
– Aqui em São Paulo, você não veve, passa a vida.
Segunda-feira seguinte, mais uma boa nova: o desemprego caiu pelo sexto mês consecutivo na cidade, chegando a 17,6 por cento, ou 1,77 milhão de pessoas – o que não inclui a mim, claro, nem aqueles que não estão procurando trabalho por “desalento”, taxa que permaneceu em 1,7 por cento, nem aqueles atirados ao trabalho precário por culpa justamente do desemprego, taxa que aumentou de 4,8 para 5,1 por cento, segundo o Dieese. Chego na loja, marmita na mão, mas sou barrada. O gerente me chama de canto: lá no escritório não aprovaram meus documentos. Como assim, se estão todos em dia? Por quê? Nada. A única resposta repetida e repetida era que eles, no escritório, são assim mesmo. Esbravejei que ia ao escritório saber o porquê daquilo tudo, e ele ainda me avisa que não adianta, eles não iam me receber. Eu fui, o escritório ficava apenas do outro lado da rua, e de fato não me receberam.
Derrota. Em que eu errei? Foi porque protestei sobre os tênis roubados? Será que alguém percebeu que eu era jornalista? Será que estava mal vestida? Mas a verdade é que eu era, como milhões, absolutamente descartável, nada mais. E é por isso, e vem disso, a quinta lição: quando você é demitida, ninguém se preocupa em explicar o porquê.
Como não explicam por que você não é selecionada, o que foi me acontecer dois dias em seguida, quando, depois de longa peregrinação pela rua José Paulino, consegui fazer um teste como auxiliar de vendedora de uma loja, e como vendedora em outra.
A sede administrativa da primeira fica perto da estação Armênia do metrô, na zona norte da cidade. É um prédio grande, todo cinza, com enormes portas de metal atrás das quais vejo rolos de tecido, sacos cheios de roupa e algumas mulheres – funciona aqui, também, a fábrica de roupas. A encarregada explica que o serviço é de assistente de vendedora, para dobrar roupas até o Natal. O pagamento, 20 reais por dia, mais condução, e o teste seria feito ali mesmo: “Agora, só depende de você”. Vou para o andar de cima, onde num galpão 50 mulheres, de pé, dobram roupas coloridas, floridas, sobre mesas de madeira. No lado direito, outras tantas passam as roupas; no esquerdo, mais outras “revisam” cada peça, olhando detalhes, acabamento. Trabalho na fileira do meio, onde Rose, 33 anos, dobra cada peça e a coloca em sacos plásticos, daqueles que a gente abre nas lojas. Nunca tinha pensado que alguém era obrigado a fazer esse serviço.
Serviço que dobra em época de Natal, conta a capixaba, na fábrica há seis anos. Ela chegou a ser demitida, mas teve de voltar:
– O patrão não queria pagar a multa, né?
Magra, brincos de argola e rabo-de-cavalo, diz que a hora extra, avisada sempre no último minuto, estende a labuta até as 7 da noite, fazendo com que chegue em casa “pra lá das 9”. O barulho dos ferros a vapor é incessante, e a conversa é pouca. Algumas cantam. Depois de horas estou zonza, e Vanusa, ao meu lado, garante:
– É assim mesmo, depois você acostuma.
Chega perto das 5 horas, e ninguém sabe se haverá hora extra; perguntam umas às outras, nervosas, se o patrão falou alguma coisa. Quando soa o apito, é um corre-corre. Elas agarram suas bolsas, no subsolo, batem o cartão e são revistadas em fila. Eu fico. Uma baixinha de rabo-de-cavalo crespo avisa que eles “vão me ligar”. Nem um agradecimento pelas quinhentas peças dobradas.
Na segunda loja – dessa vez, o teste foi na José Paulino –, a mesma história: depois de esfregar o chão; depois de me esconder no banheiro quando chega a fiscal do trabalho; depois de agüentar as mais variadas peruas o dia todo; depois de vender 650 reais em blusas de oncinha, saias com argolas douradas e tops cor-de-rosa; o que eu ganho é um “obrigado, a gente te liga”.
É verdade que nem tudo estava negro naqueles dias. Afinal, eu também dispensara um promissor posto de trabalho, numa clínica de massoterapia onde a recepcionista, educada, me explicou com a maior ciência:
– Trabalhamos com massagem terapêutica, em que você vai estar massageando o corpo do cliente. Ela é antiestresse, relaxante, antinervosismo.E também fazemos a massagem tailandesa, conhece?
– Não.
- Também é massagem no corpo do cliente, só que na tailandesa você vai estar usando partes do seu corpo, coxas, nádegas, seios, para a massagem. Só de calcinha.
Diante do meu constrangimento, ela avisa que a tailandesa é obrigatória, não pode fazer só da outra. Não paga condução, mas dá refeição.
– Ah, e no final da massagem nós trabalhamos com relaxamento manual.
– Como assim? – não consegui segurar.
Ela faz o gesto: punheta. O pagamento, por sessão, é de 10 reais por meia hora (o cliente paga 80) e 20 reais para uma hora (o cliente paga 110). Digo que vou ligar depois. Sem perspectivas, sigo para a última alternativa: empresa de promoções.
Primeiro sábado de dezembro, sento às 7 da manhã na frente de um sobrado branco, junto a uma centena de meninas, sonolentas, na calçada. Miúdas, morenas, cabelos presos, shorts e camisetas coloridas, elas vêm de todos os cantos da cidade para aguardar a sua vez de serem chamadas. Gisele, a coordenadora, explica que o trabalho é só para os fins de semana, e o pagamento, 20 reais, sai no dia 15 do mês seguinte.
– Topa?
– Topo.
Subo a escada até uma pequena sala onde quarenta meninas se espremem de frente para um homem de meia-idade. Ele anda, impaciente, de um lado para outro, vez ou outra se vira para o grupo assustado e aponta:
– Você, você, você e você.
O silêncio é total. Elas evitam olhar para o homem: a possibilidade de não ser escolhida é terrível, significa 20 reais a menos no fim do mês. Não demoro a ser chamada, vou formar fila junto às outras para receber o uniforme – calça justa azul, camisa branca de gola, boné azul. Sigo para outra salinha onde pilhas e pilhas de folhetos se misturam a outra dezena de meninas, atrapalhadas, tentando vestir o uniforme. Como a porta não fecha de tanta gente, nos trocamos sob os olhares dos motoristas.
Na perua, nove meninas entre 14 e 16 anos se espremem no banco de trás. Nívea conta que tem que acordar às 4h30 para vir do Capão Redondo, na periferia, zona sul. Vale a pena, ela garante, o dinheiro é bom. A conversa morre. Sono. Quarenta minutos depois chegamos a São Bernardo, município que faz fronteira ao sul de São Paulo. Nossa tarefa, descubro com surpresa, vai ser vigiar um banner. Isso mesmo: ficamos o dia todo, cada uma em uma esquina, paradas, olhando uma placa. Para a fiscalização não levar, já que é proibido pendurar banners naquela cidade. Sozinhas, o sol forte na cabeça, de pé. Sentar, nem pensar, nem ao menos encostar num muro: são as regras.
– Se você passar mal, liga pra a central – avisa o motorista antes de me deixar, abandonada, na minha esquina, e ali fico.
Forrester diz que a falta absoluta de postos de trabalho gera uma quantidade de “ocupações imbecis”, que são apenas a “caricaturas de trabalho”. Muita gente sobrando dá vazão a ideias estapafúrdias, como, ora essa!, ser vigia de placa. Do outro lado da rua, uma outra coitada, a negra Marcela, 15 anos, de São Mateus, na zona leste, faz o mesmo por 15 reais para outra “empresa”. Esperamos. Passam carros. Pessoas. Vem o vento. Nuvens. Que passam. Mais gente. Bicicletas. Uma carreata propagandeia algum feirão de imóveis. Minha placa propagandeia um edifício com o nome de um pintor famoso, de três suítes, duas ou três vagas na garagem, 130 metros quadrados de área privativa, “mude em junho de 2005!”
Reparo que ninguém me olha. Os olhares passeiam pela placa, param no número de telefone, e simplesmente me pulam. Sem exceção. Na paisagem urbana, não existo; o uniforme me torna, de fato, invisível – é a “invisibilidade pública”, fenômeno que o psicólogo Fernando Braga observou ao trabalhar junto com os garis da USP.
Domingo, 5 de dezembro, subo na Kombi para o último dia dessa jornada. Vou distribuir panfletos com duas alegres meninas, ambas de 17 anos. De novo, as regras são gritadas dentro da Kombi: não sentar nem encostar nem espalhar panfleto nem dar dois por vez nem furar o sinal nem prender o cabelo.
Paramos numa esquina da avenida Rudge e nos dividimos por faixa. Invisíveis pelo efeito mágico do uniforme, por vezes quase somos atropeladas. Mais ainda, metade dos motoristas não percebe a nossa mão estendida, nem o nosso educado “bom dia”. Uns fecham o vidro, outros seguem olhando fixo para o farol, outros abanam levemente a cabeça. Engraçado: os ricos, bem aqueles que podiam comprar um apartamento caro. Enquanto que os pobres, aqueles que passam de Brasília velha, a porta amarrada com tiras de borracha, pegam com gosto, o sorriso aberto. Os motoristas de ônibus, acostumados, pegam sempre mais que um: “Pra ajudar a menina”.
Vez ou outra passa o supervisor de Kombi, mais das vezes papeamos entre um farol e outro. Ali, no farol, quem faz a propaganda dos condomínios de luxo é a Thaís, do Capão Redondo, que dorme num cômodo com os sete irmãos mais novos; é a Tatiane, de Paraisópolis, que também divide o quarto com os irmãos, quatro, num andar erguido sobre a laje da casa da mãe. É Tatiane que, sem experiência nem idade pra trabalhar em loja de sapato, cozinha de bufê, fábrica de roupas, tem de levar dinheiro para casa. É Thaís que sonha fazer curso de operadora de telemarketing e está juntando dinheiro para isso. É Tatiane que deita comigo num pedaço escondido e fresco de calçada na hora do almoço. É Thaís que canta comigo Chove Chuva, do Benjor, quando aparecem as primeiras nuvens no céu.
Chove torrencialmente, e na cidade centenas de meninas como nós nem se aguentam de felicidade porque podem parar para descansar em algum abrigo. Nós nos escondemos no banheiro do Sam´s Club, e é ali que eu descubro que as duas são evangélicas – Tatiane é da Assembleia de Deus e Thaís, da Comunidade Evangélica Pleno – quando gritam, emocionadas, “aleluia!” para a chuva que lava tudo à nossa volta. Hora depois, o sol volta pra nos acompanhar no resto da tarde. Que demora a passar.
Na perua de volta elas dormem, cansadas. Eu seguro: quero ouvir Maria, 15 anos, muito empolgada, contar como se divertiu com os meninos que faziam malabarismo no farol.
– Eles ganharam tanta coisa, bolacha, pão, pirulito, refrigerante… e dividiram tudo com a gente!
Só isso pra melhorar o dia, mesmo, depois de ela ter dado de cara com a professora de matemática.
– Nem sei a cor que fiquei, não sabia onde enfiar a cara. Que vergonha!
Saindo da Kombi, as pernas bambas, volto para casa devagar, na cabeça a música-chiclete do programa de televisão: “ela é dona do jogo…”. Ela, ela quem?
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