Os inimigos da liberdade
Religião política
O projeto de produzir uma sociedade nova e um homem novo, extirpando o Mal da superfície da Terra, leva à pretensão de reformar o ser humano pela lei. “O legislador comanda o futuro; de nada lhe serve ser fraco; cabe-lhe querer o Bem e perpetuá-lo; cabe-lhe tornar os homens o que deseja que eles sejam”, escreveu Saint-Just num dos textos constitucionais da época. Para chegar a esse objetivo, entretanto, não serão poupados meios violentos nem o terror. “Em sua busca por uma salvação temporal, essa doutrina não reserva nenhum lugar a Deus, mas preserva outros traços da antiga religião, tais como a fé cega nos novos dogmas; o fervor nos atos que lhes são úteis; o proselitismo dos fiéis ou a transformação de seus partidários caídos em combate em mártires”, explica Todorov. O processo criará “uma espécie de religião política”, como definiu o marquês de Condorcet, figura emblemática do período.
O messianismo político levará o projeto revolucionário a se estender a outros países. Já em 1792, a França decide que outorgaria “fraternidade e socorro a todos os povos que desejarem recuperar sua liberdade”. Ou seja, a “exportação da fraternidade”, via ocupação de outros países pelos soldados franceses, é legítima. Os revolucionários franceses, vendo-se como superiores a seus vizinhos, se atribuem o poder de erradicar a barbárie e a selvageria também de povos mais distantes, mesmo que pela coação e pela força. Outros colonizadores, especialmente os ingleses, farão o mesmo.
A segunda onda do projeto messiânico, para Todorov, é o da revolução comunista, que defende a ideia de que “a história possui uma direção preestabelecida e imutável”, cuja marcha não é ditada pela Providência divina: suas leis são estabelecidas “de maneira científica”. Como consequência do desejo de não apenas modificar as instituições, mas de transformar os próprios seres humanos, nascerá no século 20 o Estado totalitário, que propõe o controle integral da sociedade e a eliminação de categorias inteiras da população.
A queda do bloco comunista, no final da década de 1980, é para o pensador o marco do início da terceira forma de messianismo político, a primeira a corresponder às democracias modernas. Em vários aspectos, a terceira onda se opõe aos projetos totalitários que a precederam, mas há semelhanças com a primeira, a das guerras revolucionárias e coloniais. “Essa política consiste em impor o regime democrático e os direitos humanos pela força, um movimento que, no entanto, gera uma ameaça interna para os próprios países democráticos”, diz Todorov.
Livre empresa – Dessa política fazem parte elementos como o direito à ingerência, conforme definido em documento do governo do presidente George W. Bush divulgado pouco antes da invasão do Iraque, em 2003. No texto “A estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos da América”, o governo estadunidense se declara encarregado da missão de impor os valores da “liberdade, da democracia e da livre empresa” pelo globo, se necessário pela força. Curiosamente, lembra Todorov, ao decidir submeter o Egito, em 1798, Napoleão anunciou às suas tropas: “Soldados, ireis empreender uma conquista cujos efeitos sobre a civilização e o comércio serão incalculáveis”. No ano passado, o democrata Barack Obama fez discurso no mesmo tom de seu antecessor republicano, ao dizer que os Estados Unidos são “o fiador da segurança global e o defensor da liberdade humana” e devem intervir onde for necessário para, entre outras coisas, “manter a liberdade de comércio”.
Shermer: cérebro é uma máquina programada para acreditar
“Basta dizer ‘liberdade’ para ficarmos todos de acordo? Não sabemos que os tiranos do passado invocavam regularmente a liberdade? Somos a favor da liberdade incondicional inclusive para a raposa no galinheiro? E o que vem fazer a ‘livre empresa’ entre os valores universais?”, pergunta o escritor. “Liberdade”, assinala, é uma palavra hoje onipresente nos nomes ou manifestos de partidos xenófobos de Leste a Oeste da Europa. Para Todorov, os valores democráticos brandidos pelos países ocidentais como motivo de intervenção – apenas, ressalta, em algumas nações mais débeis e não em outras que suscitariam as mesmas justificativas, mas dispõem de aliados mais fortes no cenário global – foram percebidos pelas populações como “a confortável camuflagem de intenções inconfessáveis”.
Uma das mais poderosas ameaças que pairam sobre as democracias ocidentais, diz Todorov, citando o juiz francês Serge Portelli, “é a de uma sociedade de segurança absoluta, de tolerância zero, de prevenção radical, de prisão preventiva, de desconfiança sistemática em relação ao estrangeiro, de vigilância e de controle generalizado”. É assim que a democracia se tornou sua própria inimiga, afirma o escritor, que descreveu sua experiência sob o regime comunista búlgaro até os 24 anos de idade como um paradoxo no qual “todo aquele mal era realizado em nome do bem e justificado por um objetivo apresentado como sublime”.
“Todos nós, habitantes da Terra, estamos envolvidos hoje na mesma aventura, condenados a ter êxito ou a fracassar juntos”, define o especialista em literatura que emigrou para a França, se transformou em historiador das ideias e em 1973 naturalizou-se francês. “Embora o indivíduo isolado seja impotente diante da enormidade dos desafios, mantém-se a verdade: a história não obedece a leis imutáveis, a Providência não decide quanto ao nosso destino. O futuro depende das vontades humanas.”
Esta reportagem foi publicada no site http://espaber.uspnet.usp.br, em 14 de setembro de 2012. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade do autor.