Disciplina - Sociologia

Sociologia

08/10/2009

Reforma agrária e democracia, ou melhor, reforma Agrária é democracia


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“Sem terra não se planta
Sem planta não se vive
Plante a Reforma Agrária”.

Entrevista concedida a Renata Costa Cézar de Alburquerque e Helciane Angélica Santos Pereira do Setor de Comunicação da CPT – Comissão Pastoral da Terra – em Olinda, Pernambuco, em 28 de julho de 2009.

SDCPT – como surgiu o seu interesse em pesquisar os conflitos no campo no Brasil?
Carlos Walter - Em um determinado momento de minha trajetória de professor, pesquisador, nos anos 80, eu me dei conta que conhecia razoavelmente aquilo que o Marx chama “a lógica do capital”. Naquele período, explodia no Brasil inteiro a luta dos movimentos sociais e eu percebia que as categorias que eu tinha, e que me explicavam a lógica do capital, não me ajudavam a entender porque surgiam todos esses movimentos.
Então, neste período, começo a me interessa e a me debruçar sobre a lógica dos que resistem ao capital mais do que tentar entender somente a lógica do capital. É quando passo a me dedicar inteiramente ao estudo da geografia de movimentos sociais. E acabo desenvolvendo toda uma teoria geográfica, no qual o conceito de conflito acaba sendo um elemento extremamente importante para a análise, para a compreensão da sociedade, porque o conflito mostra como a contradição se apresenta, na prática, na sociedade. O conflito é a maneira concreta como os agentes estão protagonizando as contradições e não só a contradição capital X trabalho. Enfim passo a entender o conflito como contradição em estado prático.
SDCPT - Muitos países já realizaram a Reforma Agrária, seja pela Via Cepalina, seja pela revolucionária ou capitalista. Historicamente, no Brasil, a Reforma Agrária não aconteceu por nenhuma das vias. Quais são os elementos que impedem o avanço da pauta e a realização da Reforma Agrária no país?
Carlos Walter - A formação do Brasil é caracterizada por uma estrutura muito própria. A concentração fundiária está associada à própria forma como o estado se organizou no país. O estado Português, então dono do território brasileiro, concedia Sesmarias aos amigos do Rei. Desde o início temos um processo cruel de formação da sociedade brasileira, e que vai ter a sua expressão na própria formação do território brasileiro, que é essa mancomunação entre as oligarquias e as próprias estruturas do poder. O estado português fazia a concessão da terra e investia os sesmeiros da prerrogativa de que ele [o sesmeiro], ao afirmar produtivamente sua sesmaria, afirmava também o controle social da metrópole portuguesa sobre o território de além-mar. Assim, havia um objetivo político – o controle territorial – comandando a concessão das sesmarias. O sucesso econômico da sesmaria cumpria, assim, um objetivo político de controle territorial. Assim, o sesmeiro latifundiário era, desde o início, um herói da conquista e, para isso matar e desmatar foram seus instrumentos de controle territorial contra os índios e depois contra todos que não fossem fidalgos (palavra que deriva de fi´lhos d´alguém). Deste modo se gerou essa oligarquia truculenta e violenta que até hoje vem comandando o nosso país. O Brasil conforma uma sociedade onde a estrutura de poder das oligarquias está extremamente ligada à estrutura de poder do estado. E, desde o início, a estrutura montada para a acumulação do capital está diretamente ligada à terra. À época colonial o Brasil já exportava a principal manufatura que circulava no mercado mundial: o açúcar. Ao contrário do que nos ensinaram nas escolas, o Brasil (assim como Cuba e Haiti) não exportava matérias primas e, sim, o açúcar que era um produto manufaturado nos engenhos. Nossas oligarquias sempre foram modernas. A ideologia da modernização no Brasil “bem vale uma missa”, parodio Marx. Enfim, por tudo isso a luta pela Reforma Agrária no Brasil acaba sendo uma luta anti-capitalista, uma luta que confronta o capital. Por isso tanta dificuldade de fazer a Reforma Agrária no Brasil.
É possível verificar essa violência histórica analisando os dados que a CPT colige todo ano. Por exemplo, no primeiro ano do governo Lula, em 2003, os índices de violência no campo aumentaram enormemente no Brasil. Os índices são comparáveis ao período da constituinte no final dos anos oitenta, quando a União Democrática Ruralista (UDR) atingiu seu auge. Naquele ano de 2003 foram 72 assassinatos no país. Só no Pará foram 33. As oligarquias partiram para ofensiva, para a violência – seja pela milícia privada, seja pelo poder judiciário - temendo que Lula fizesse a Reforma Agrária. A violência naquele ano foi fruto da reação das oligarquias diante de um contexto que ela achava que seria favorável à Reforma Agrária. No período de debate da Constituinte, no final dos anos oitenta, as elites partiram para violência no país inteiro porque achavam que se mexeria na estrutura da terra. Enfim, nos anos em que a sociedade brasileira ousou ser mais democrática, foram anos de maior violência no campo. Como Lula aderiu ao projeto agrário-financeiro das Oligarquias, a violência diminuiu nos anos seguintes. Ou seja, quem provoca a violência no Brasil não são os camponeses, não são os trabalhadores, é sempre uma violência protagonizada pelas oligarquias. Hoje, em pleno 2009, vivenciamos a mesma truculência de 500 anos atrás. Essa estrutura de poder profundamente desigual tem como base a concentração da propriedade da terra. Esclareçamos para evitar dúvidas que não existe latifúndio improdutivo, pois todo latifúndio é produtivo: é produtivos de injustiça, de desigualdade, e sempre estrutura uma sociedade não-democrática pela concentração de poder. Os agronegociantes de hoje reafirmam esse caráter moderno e antidemocrático de 500 anos com seus latifúndios produtivos de grãos e violência como os de ontem produziram igualmente muita cana e injustiça. A naturalidade com que a sociedade brasileira aceita esse agronegociantes advém dessa mesma naturalidade com que há 500 anos somos modernos, injustos e violentos.
SDCPT – Como você avalia hoje a atuação do governo diante da Reforma Agrária?
Carlos Walter – Conversando com as pessoas que compõem o próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Incra, elas dizem abertamente que o governo abandonou completamente a Reforma Agrária, e que está vivendo de apagar incêndio. Não precisa nem ser uma análise de alguém crítico ao governo. No Brasil, onde há mais demanda de terras é no Sudeste e Nordeste, entretanto, a maior parte dos assentamentos está na Amazônia. Há um descolamento entre a área onde há demanda de terra e onde o governo distribui a terra. Não há uma política de Reforma Agrária, no máximo, há uma política de colonização, o que acaba sendo o contrário da Reforma Agrária. E o Lula recebeu uma votação significativa inclusive porque construiu sua trajetória política defendendo a Reforma Agrária. O Lula até se eleger jamais fez qualquer elogio ao agronegócio, ele jamais poderá alegar que já tinha simpatia pelo agronegócio antes de ser presidente. Ele acaba aderindo ao projeto das elites, das oligarquias, à lógica do agronegócio, e negando tudo o que ele disse ao longo de sua vida, ao contrário de FHC que fez no governo o que escreveu em seus livros (afinal, uma divergência importante de FHC com relação ao seu Mestre Florestan Fernandes é que em vez de romper com a dependência por meio da revolução democrático-socialista, como propunha Florestan, ele achava que deveria se aderir ao imperialismo como sócio subordinado. E foi isso que ele fez no seu governo).
Muitos dizem que a Reforma Agrária já não é mais necessária, que deveria ser feita nos anos 50, 60 quando o país estava se desenvolvendo. Muitos pensam que a Reforma Agrária está relacionada unicamente a questão econômica. A Reforma Agrária tem que ser vista, não como uma questão econômica, e sim como uma questão de democracia. Significa dizer que quando a terra está concentrada, o poder está concentrado. É claro que em um país onde se faz a distribuição de terras, há potencialidade e possibilidade da riqueza econômica também ser democratizada. O objetivo maior da Reforma Agrária é mexer na estrutura concentrada do poder. O Brasil não é um país pobre, é injusto, conseqüência dessa estrutura de poder. No Brasil, a Wolksvagem é proprietária de terra, assim como o Bradesco, o Itaú, o Daniel Dantas etc. E o que acontece nesses casos é que a terra fica improdutiva serve apenas como moeda de troca pra receber financiamento (reserva de valor). Não sabemos se a Sadia ou a Perdigão são grupos agrários. Por isso eles se colocam contra a alteração dos índices de produtividade como determina a Constituição brasileira. Declarações do próprio presidente da Sadia afirmam que 80% dos lucros da empresa vêm do mercado financeiro. No entanto, ela recebe financiamento do BNDES destinado à agricultura e com respaldo da sociedade como se estivesse captando recursos para produzir alimentos. Para elas o agro é só mais um negócio. É claro que se informarmos a sociedade brasileira que a Sadia, ou a Aracruz ou a Votorantin pedem dinheiro ao BNDES para simplesmente ganhar mais dinheiro no mercado financeiro elas não teriam o apoio que apregoam que o agronegócio tem. Mas elas dizem que é para produzir alimentos e aí saem abençoadas. Como se vê o agro é só um negócio!
SDCPT - Entre as experiências de Reforma Agrária, quais vêm se destacando e que poderiam ser um referencial pro Brasil?
Carlos Walter - Temos várias experiências de Reforma Agrária em curso no mundo. Cuba é um exemplo. O país hoje passa por uma Reforma Agrária dentro da Reforma Agrária. Lá, mesmo com realização da Reforma Agrária depois da Revolução, o monocultivo da cana continuou forte, pois a princípio não foi pensado um modelo de agricultura camponesa, de diversificação produtiva, de soberania alimentar e sustentabilidade. Agora, depois da queda da União Soviética, os cubanos estão vendo o valor da soberania alimentar e de encontrar um modelo agrícola agrário em outras bases sociais e tecnológicas. Esse processo está sendo muito interessante. Também tem experiências importantes em curso na Bolívia, com um componente interessante que é o reconhecimento dos territórios indígenas. Na Bolívia, 62% da população falam línguas indígenas – o Quéchua, o Aimara e o Guarani. Estamos falando da maioria da população. Nesse país, em 1952, houve uma Reforma Agrária em que a esquerda dividiu os territórios comunitários indígenas em parcelas camponesas, porque achava que os índios representavam o atraso. Esse processo atual com Evo Morales à frente é uma Reforma Agrária que reconhece a territorialidade indígena e não tenta fatiá-la em propriedades camponesas. Essas questões obrigam a esquerda a repensar sua própria forma de pensar o mundo, muitas vezes marcadas por uma visão também colonial.
Mas uma coisa é importante ser dita: não existe modelo de Reforma Agrária passível de ser transferido ou copiado para qualquer outro país. Os países têm suas especificidades. O Brasil, por exemplo, tem uma diversidade ecossistêmica muito grande. Não poderíamos pensar em um modelo único de Reforma Agrária sequer para todo o nosso país. Além de o Brasil ter uma enorme diversidade biológica, temos também uma enorme diversidade de povos e de formações camponesas muito singulares (fundo pasto, faxinais, o complexo seringal-colocação seringueiro, os retireiros do Araguaia, as quebradeiras de coco de babaçu, enfim ....). No Brasil se fala mais de 180 línguas indígenas, isso implica uma diversidade cultural enorme, isso implica populações que embora sejam pequenas, ocupam territórios que são relevantes. Essas populações são patrimônios culturais da humanidade, têm o direito a viver da maneira que querem viver e de decidir o que de nossa cultura querem e não querem. A Reforma Agrária está sempre associada a um projeto nacional que tanto pode ser um projeto que quer negar tudo isso em nome do progresso (como é o caso do agronegócio), como pode (e deve) ser um projeto que toma em conta toda essa diversidade social, cultural, política que o país possui. Chico Mendes, por exemplo, deu visibilidade à luta dos seringueiros e tinha essa compreensão. Ele propôs a Reserva Extrativista que, segundo ele, era a reforma agrária tal como vista pelos seringueiros, que tem por trás e no fundo um projeto de nação, pois ele entendeu que para defender a Amazônia, tinha que preservar os seringueiros e os demais povos. Não há defesa da floresta sem os povos da floresta, como ele dizia. Aliás, Chico Mendes propôs no Congresso dos Trabalhadores Rurais realizado em Brasília, em 1984, que a reforma agrária deveria respeitar os contextos sociais e culturais, e eu diria, também geográficos, específicos. E essa tese foi aprovada.
SDCPT - Como você vê o cenário, o mapa atual da violência no campo no Brasil hoje?
Carlos Walter - Temos nos últimos dois anos um declínio nos conflitos no campo no Brasil. As razões podem ser múltiplas. Uma delas é essa questão dos programas sociais e seu poder apaziguador de conflitos, como é o caso do Bolsa Família, Bolsa Escola etc. Embora não seja só isso, isso é um componente importante que interfere no poder de mobilização da sociedade para lutar. De outro lado, as oligarquias estão satisfeitas com Lula. Elas baixaram o ímpeto de violência que tinham no início do governo, já que Lula aderiu ao projeto do agronegócio. E elas são a principal protagonista dos conflitos como já disse. O novo desenho que está aparecendo na geografia da violência é o aumento significativo das comunidades tradicionais, entre os envolvidos nos conflitos no campo. Em 2007, 43% dos envolvidos nos conflitos eram comunidades tradicionais e, em 2008, essa proporção passou a 53%. Isso significa que o capital está avançando e entrando em áreas que são tradicionalmente ocupadas por populações como essas.
Temos que ficar atentos que essas áreas são riquíssimas em biodiversidade, minérios e água, e que, hoje, o capital as disputa contra essas populações que, assim, adquirem um caráter estratégico em qualquer projeto que se pretenda emancipatório. Então, quando afirmamos que há o aumento do envolvimento das comunidades tradicionais atingidas pelo ímpeto da expropriação de terra pelo capital e envolvidas nos conflitos de terra, estamos falando também do avanço contra a riqueza de biodiversidade e diversidade cultural do país. Isso indica um elemento muito grave: a expansão do capital para novas áreas se dá muitas vezes por expulsão dessas populações. Por exemplo, a cana-de-açúcar vem se expandindo e entrando nas áreas onde antes havia o gado. Nesse caso, não há troca de um cultivo pelo outro. Nesse caso há troca de uma área de pastagem por uma de cana. Resta uma pergunta, pra onde vai o gado? O gado se expande... Vai pro interior da Bahia, pro Sertão do São Francisco, pra Amazônia. O gado aumenta a tensão nas áreas das comunidades tradicionais.
SDCPT - Qual a importância política da territorialidade no projeto de Reforma Agrária defendido pelos movimentos sociais?
Carlos Walter - A partir dos anos 70, passamos a ter um componente novo no debate político da questão agrária no mundo, onde o movimento indígena começa a colocar explicitamente no debate algo que historicamente sempre o caracterizou, a questão territorial. O debate territorial muda a qualidade do debate da Reforma Agrária, porque significa introduzir um componente novo na discussão, o da cultura. Quando falamos que queremos ser reconhecidos pela nossa territorialidade, não queremos só a terra, queremos um sentido determinado de estar na terra, queremos o respeito ao nosso modo específico de estar na terra. Estamos reivindicando a territorialidade distinta, exigindo o reconhecimento das diferenças. Isso acaba denunciando o caráter colonial com sua proposta de progresso levando à homogeneização inclusive da leitura do país. O país não era e não é homogêneo. As populações começam a reivindicar as reservas extrativistas, os fundos de pastos, não é mais uma questão só indígena e quilombola. O Brasil é repleto de diferentes “campesinidades”, que se criam a partir das condições diversas do ambiente onde as comunidades vão criativamente se amoldando ao que os ambientes oferecem. Essas comunidades não são determinadas pelo ambiente, mas elas sempre partem do potencial produtivo da natureza. É uma cultura com a natureza e não contra a natureza. Isso é o novo bebendo na melhor de nossa tradição cultural. Nem tudo que é velho é bom, mas nem tudo que é novo também o é. É preciso abandonar qualquer fundamentalismo seja da tradição, seja do novo.
CPT- Os meios de comunicação e o governo, por exemplo, fazem pensar que a Reforma Agrária é uma pauta única e exclusiva dos camponeses e das camponesas. Quais são os impactos da não reforma agrária, do avanço do agronegócio nos centros urbanos?
Carlos Walter – O avanço do agronegócio no campo impacta a cidade em todos os sentidos. O latifúndio se expandindo através do agronegócio vem promovendo a cruel expulsão dos trabalhadores do campo. Um dos impactos, por exemplo, são as nossas favelas. Todas essas pessoas não têm condições de serem empregadas pelo próprio desenvolvimento das novas tecnologias pelo capital. O capital não tem a menor condição empregar aqueles que desaloja do campo. Boa parte dessa população está vivendo por conta própria, e elas têm que se virar na cidade. O próprio desenvolvimento tecnológico diminui a capacidade de empregabilidade do capital. Ai o que se oferece nas periferias urbanas do Rio de Janeiro, por exemplo, é o Caveirão e ONGs pra fazer o trabalho-de-faz-de-conta-que-estamos-fazendo-alguma-coisa. Mas digo que um dos piores efeitos de não se fazer Reforma Agrária ainda é a questão da democracia. A Reforma Agrária, insisto, não é uma questão econômica, mas sim de democracia, o que significa dizer que a sociedade brasileira jamais será democrática enquanto tivermos os latifúndios empresariais e os monocultivos expulsando as populações e concentrando o poder. Concentração de poder é o contrário de democracia. É oligarquia. Os efeitos são a desmoralização da democracia, além dos efeitos na economia, na biodiversidade e na destruição do meio ambiente. O problema do Senado não é simplesmente de corrupção, embora também o seja. É de concentração de poder, para o que a não-reforma agrária contribui para a sua perpetuação.
SDCPT – Em seu acompanhamento no trabalho da CPT, o que pode ser destacado como essencial para a discussão e avanço da luta pela reforma agrária no país?
Carlos Walter – Antes de tudo devemos entender que a Reforma Agrária deve sempre estar associada a um projeto de país, a um projeto de sociedade. E se queremos um país e uma sociedade democráticos devemos desconcentrar o poder, para o que revolucionar nossa estrutura fundiária é condição sine qua non. Além disso, não dá mais para pensar o país, a sociedade como se ela fosse monocultural. No Brasil se falam mais de 200 línguas. Além disso, o campesinato tem que ser visto na sua diversidade social e cultural – faxinalenses, seringueiros, retireiros, geraizeiros, quebradeiras de coco de babaçu, ribeirinhos, pescadores, quilombolas, camponeses com fundos de pasto, entre muita/os e muita/os outra/os – e que desenvolveram regras, “acordos” de partilhamento do uso dos recursos naturais que devem ser devidamente reconhecidos formalmente na nossa Constituição. Enfim, pluralismo jurídico, como sugere a resolução do IVº Congresso de Trabalhadores Rurais de 1984 que diz que “a reforma agrária deve respeitar os contextos sócio-culturais específicos”, proposta, aliás, defendida por Chico Mendes que, já ali, amadurecia a idéia de Reservas Extrativistas que, ainda segundo ele, era “a reforma agrária dos seringueiros”. Nesse sentido, o movimento de luta pela Reforma Agrária deve ser mais enfático na exigência de aplicação da Convenção 169 da OIT que, inclusive, foi assinada pelo governo brasileiro depois de aprovada pelo Congresso. O princípio da Convenção 169 não é coisa somente de índios e de negros. O território brasileiro abriga múltiplas territorialidades que devem ser devidamente respeitadas para que tenhamos um país onde as regras tenham a cara do povo com sua riqueza diferenciada. Devemos ser capazes de saber conduzir na conjuntura a defesa da igualdade e da isonomia visando respeitar a diferença caminhando no sentido da justiça. Enfim, igualdade e diferença não se excluem na perspectiva das lutas emancipatórias. Nesse caminho a mulher deve ter a dignidade que cada qual vê na sua mãe para que saibamos cuidar da nossa reprodução enquanto sociedade que se quer sustentável. Nenhuma mãe quer dar comida envenenada para seus filhos e devemos deixar para as gerações futuras – como bonni patres familae – (como dizia Marx) as condições naturais de reprodução e cuidarmos da água, da biodiversidade, da vida. A defesa da vida deve ser um princípio que vá além da vida humana como recentemente a Constituição do Equador reconheceu. O saber técnico, enfim, deve ser visto como parte desse projeto político. Uma ciência e uma técnica para a vida ou para a acumulação do capital? Afinal, essa é uma discussão que os que defendem a reforma agrária devem protagonizar, aliás, como vêm fazendo, posto que nesse momento não é um projeto de futuro que estamos debatendo, mas simplesmente se teremos futuro! Afinal, o aquecimento global não é uma externalidade da economia e da sociedade que temos. Ao contrário, o aquecimento global é o resultado do êxito técnico-científico dessa sociedade, tal qual a bomba atômica e o agrotóxico – Ciência sem Consciência, Ciência para a Morte e não para a Vida. Saiamos da toca e afirmemos cabalmente que a crítica a esse sistema técnico não é uma crítica à técnica, o que seria um absurdo histórico, já que não existe sociedade sem técnica. Sendo a técnica um meio para se atingir determinados fins, o sistema técnico é parte das relações sociais e de poder que uma sociedade institui e não vê-lo assim é não entender objetivamente o que é um sistema técnico. Como se vê, a reforma agrária se complexificou o que exige uma dialética complexa.
SDCPT – Pra terminar, Professor, como o senhor vê o papel que a CPT vem desempenhando na luta pela Reforma Agrária?
Carlos Walter - O papel da CPT tem sido relevante para a luta pela Reforma Agrária no país, por tudo que a CPT contribuiu para que surgisse no Brasil. A CPT está na base da criação do MST, do MAB, está junto e estimulando a auto-organização dos trabalhadores no Brasil. Me sinto orgulhoso de poder colaborar com a CPT, sobretudo pelo respeito que a sua direção tem com relação à autonomia do trabalho intelectual. O trabalho que a CPT tem feito, estimulando a auto-organização, é um trabalho que a sociedade brasileira, se tivesse direito à informação veraz, saberia se orgulhar. Pelo menos para os que, como eu e felizmente não estou sozinho, se colocam na perspectiva dos trabalhadores e demais grupos subalternizados e que devemos estar atentos o tempo todo para compreender o que os setores dominantes impõem e buscar encontrar as razões da emancipação, enfim, da dignidade e da liberdade, no interior da própria cultura subalterna. Enfim, como dizia Paulo Freire: “ninguém liberta ninguém. Ninguém se liberta sozinho. Os homens só se libertam em comunhão”.
- Entrevista concedida a Renata Costa Cézar de Alburquerque e Helciane Angélica Santos Pereira do Setor de Comunicação da CPT – Comissão Pastoral da Terra – em Olinda, Pernambuco, em 28 de julho de 2009.
Carlos Walter Porto-Gonçalves, professor adjunto da Universidade Federal Fluminense, pesquisador do CNPq e do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais - CLACSO.


fonte:http://www.alainet.org/active/33521〈=es
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