Sociologia
29/04/2010
Tratado Comercial Antifalsificação
Por Antonio MartinsApareceu finalmente hoje (21/4), conforme se previa, a primeira versão pública do ACTA — o acordo internacional de restrição às trocas culturais e científicas que dezesseis países negociam em sigilo, desde 2007. Nas últimas semanas, a pressão da sociedade civil tornou impossível manter a trama encoberta. Numa época em que centenas de milhões de pessoas acostumaram-se a compartilhar ideias e bens imateriais pela internet, o acordo previa, nas versões sigilosas que vazaram, excluir da rede usuários que trocassem arquivos musicais; proibir os medicamentos genéricos; autorizar as policias alfandegárias a vasculhar notebooks e celulares, em busca de arquivos “não-autorizados”.
Negociado em segredo por governos e grandes corporações, devido à impopularidade da maior parte de suas cláusulas-chave, ACTA é a sigla, em inglês, de Tratado Comercial Anti-Falsificação. Por trás destas palavras, esconde-se uma tentativa de frear as novas formas — não-mercantis — de intercâmbio de produtos culturais e conhecimento. Procura recompor a situação existente antes da internet, quando estas trocas (de música, vídeos ou notícias, por exemplo) requeriam obrigatoriamente um intermediário capitalizado (uma gravadora, um estúdio, um grande jornal). Como tal intermediação tornou-se tecnicamente desnecessária, o acordo procura reintroduzi-la reprimindo, por meios jurídicos, a circulação direta. Para isso, recorre a medidas que ferem direitos fundamentais do ser humano.
A partir de março, com a aparição do que se preparava às escuras, formou-se rapidamente uma coalizão internacional de grupos da sociedade civil contra a ACTA. Ela denunciou, em primeiro lugar, a absoluta falta de transparência nas negociações. As pressões pelo fim do sigilo acenturam-se às vésperas da 8ª rodada de negociações do acordo, realizada entre 12 e 16 de abril, em Wellington, Nova Zelândia. Acuados, os países participantes divulgaram, na sessão final do encontro, uma nota oficial em que negavam parte das versões anteriores do acordo — e pediam mais cinco dias para encerrar o segredo.
Foi o que se deu em 21/4. O texto tem 39 paginas em inglês. Ao contrário das versões anteriores, já não contém, para cada tópico do possível acordo, as diferentes posições dos vários paises. Esta uniformização deve ter consumido os últimos cinco dias. Também foram excluídos, como se previa, os aspectos que mais atentavam contra direitos e liberdades fundamentais. Diante do vazamanto de suas pretensões iniciais, e da forte reação a elas, os promotores do ACTA parecem ter realizado um recuo estratégico. Abandonam momentaneamente parte de seus objetivos. Tentam livrar-se do repúdio ao caráter oculto de sua articulação. E, munidos de uma proposta menos rejeitada, procuram colocar-se em condições de retomar o debate.
Poucas horas depois de revelada a versão light da ACTA, já surgiram as primeiras análises, feitas pela coalizão de movimentos que combate o acordo. Uma delas é de autoria de Nate Anderson e está publicada no site Ars Technica. Embora breve, o estudo descreve o essencial.
As cláusulas que mais chocavam a opinião pública estão menos visíveis, mas permanecem na forma de subterfúgios. Um exemplo: já não constam do texto dispositivos como os do projeto de lei do senador Azeredo, que obrigavam os provedores de acesso à internet a tirar do ar usuários acusados (pelas empresas da indústria cultural) de violar propriedade intelectual. Eles foram substituídos, porém, por cláusulas mais obscuras, que livram os provedores desta obrigação desde que… assumam compromisso com a “adoção e implementação de política para enfrentar ao armazenamento ou transmissão não autorizada de materiais protegidos por copyright”.
A análise de Nate Anderson parece confirmar a impressão que surgiu em 16 de abril, quando os países que negociam a ACTA anunciaram a breve publicação de sua proposta. À época, o site francês Numerama (também empenhado em examinar criticamente a iniciativa secreta) sugeriu que a estratégia dos partidários do acordo é, agora, legitimar um ambiente favorável a suas pretensões de longo prazo — e construí-las passo a passo. Isso implica desautorizar e substituir a Organização Mundial da Propriedade Industrial (OMPI), o organismo da ONU encarregado do tema.
Tais informações podem ajudar a definir uma contra-estratégia. Uma das possíveis razões para a tentativa de desempoderar a OMPI é o fato de ela ter ensaiado, desde 2004, uma tentativa de rever — para melhor — as leis de propriedade intelectual. Lançado por Brasil e Argentina, este movimento institucionalizou-se na forma de uma “Agenda do Desenvolvimento”.
Em janeiro de 2010, por exemplo, na última série de conversações a respeito, o Brasil apresentou oficialmente uma proposta de “exceções aos direitos de patente e limitações à propriedade intelectual”. A base do projeto é buscar um “reequilíbrio” entre os direitos dos detentores de propriedade intelectual e os do conjunto das sociedades.
A “Agenda do Desenvolvimento” tem sido acompanhada, com razoável regularidade, pelo “Observatório OMPI“, do site Cultura Livre, que publica textos de Pedro Paranaguá. O exame de seu desenrolar poderia dar início a um processo semelhante ao que começou a se dar, no Brasil, como alternativa ao Projeto Azeredo. Nesta hipótese, ao invés de apenas denunciar a ameaça da ACTA, parte-se para o contra-ataque — compreendendo e difundindo uma proposta de sentido democratizante. A mobilização da sociedade civil, inclusive, resultar em avanços na proposta alternativa.
O debate em torno da ACTA e das respostas a ela tende a se estender por anos e ganhar espaço crescente na agenda política mundial. O recuo parcial dos promotores da proposta permite ganhar tempo. O surgimento, em curto prazo, de uma articulação internacional para defender a livre circulação de conhecimentos, cultura e comunicação demonstra que não há, no horizonte, apenas ameaças…
Este conteúdo foi publicado em 21/04/2010 no sítio Outras Palavras. Todas as modificações posteriores são de responsabilidade do autor original da matéria.