Sociologia
17/05/2010
A era dos massacres étnicos
Por Sylvia MiguelO conceito moderno de genocídio foi se desenvolvendo ao longo da primeira metade do século 20, a partir de fatos como os ataques turcos contra os armênios e outros episódios de violência e perseguição a minorias. Diante das atrocidades da Alemanha nazista, na década de 1940, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill declarou, em agosto de 1941: “Estamos presenciando um crime sem nome”.
Mas o fenômeno a que se referia Churchill já havia chamado a atenção, em 1921, do jovem judeu polonês Raphael Lemkin. Naquele ano, um armênio chamado Soghomon Tehlirian havia sido absolvido pelo assassinato de Tallat Paxá, ministro do Interior do Império Otomano que foi um dos responsáveis por planejar a eliminação de cerca de 1,5 milhão de cidadãos armênios. Lemkin estava chocado com o fato de existir punição para uma pessoa que mata outra, mas não haver legislação para quem perpetrasse a matança de milhares. Refugiado da guerra, Lemkin chega aos Estados Unidos justamente no ano de 1941. Mais tarde, declarou que cunhou o termo “genocídio”, em parte, em resposta à declaração de Churchill.
Na acepção do termo criado por Lemkin, o genocídio armênio perpetrado pela Turquia otomana (de 1915 a 1923) é considerado o protótipo do genocídio. Nesse contexto surgia, portanto, o conceito. Sendo assim, o fenômeno diferenciou-se conceitualmente de “crime de guerra”. Mas seria definido legalmente apenas 30 anos mais tarde, no Estatuto de Nuremberg.
Trata-se de um fenômeno em que um governo ou um grupo no poder ataca uma minoria étnica identificável, com a finalidade exclusiva de exterminá-la parcial ou integralmente, de forma planejada e sistemática, como maneira de resolver os conflitos de dominação política. O ato difere, portanto, de chacinas em massa de populações, ocorridas ao longo da história, em geral associadas a invasões, imperialismos e conquistas.
Compõem o quadro de mortes por genocídio no século 20 o massacre contra os armênios (1915-1923) e os ocorridos no Curdistão (1919 e 1999), Ucrânia (1932-1933), Alemanha (1933-1945), Criméia e Volga (1941), Indonésia (1965), Nigéria (Biafra, 1967-1970), Bangladesh (1971), Burundi (1972), Camboja (1975-1979), Timor (1975-1979), ex-Iugoslávia (1991-1999), Ruanda (1994), China (Tibete) e Darfur (oeste do Sudão).
Críticas e perspectivas – O professor Herbert Hirsch, da Virginia Commonwelth University, nos Estados Unidos, defendeu – em palestra realizada no dia 23 de abril, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – que as ações e legislações existentes não são eficazes para a prevenção e punição do genocídio porque toda a legislação é feita sobre modelos criados com base nas atrocidades do século passado e o atual século traz novos elementos que alteram os paradigmas. “A conceitualização moderna de genocídio pode não nos dar mais uma descrição adequada do mundo real no que diz respeito às políticas nacionais e internacionais”, afirmou. Hirsch integrou a sessão “Genocídio: Negação, Política e Prevenção” do Seminário Internacional 95 Anos do Genocídio Armênio, realizado de 22 a 24 de abril, na FFLCH.
Hirsch chamou a atenção para o silêncio dos Estados Unidos no que diz respeito a uma política de prevenção e punição ao genocídio. Mostrou em sua palestra que uma tentativa de os Estados Unidos remediarem a inação foi a criação de uma força-tarefa que produziu um relatório sobre prevenção de genocídios, intitulado Preventing Genocide: A Blueprint for U.S. Policymakers. Um documento, segundo Hirsch, “sem nenhum impacto na administração Obama”. E que manifestou as fraquezas da própria resolução R2P, de 2004 – justamente o conjunto de medidas que compõem o plano de ação anunciado naquele ano por Annan, da ONU.
A principal crítica de Hirsch à maior parte de toda a literatura sobre genocídio, acadêmica ou não, diz respeito à ausência de definições operacionais necessárias ou suficientes que permitam a implementação de ações de prevenção ao genocídio. Para ele, falta especificidade ou mesmo descrições realísticas que evitem generalizações e assim induzam à ação preventiva.
Em 1946, a Organização das Nações Unidas declarou o genocídio como um crime contra o Direito Internacional e, em 1948, a mesma ONU estabeleceu a sua Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Depois disso, muitas ações foram tomadas internacionalmente na tentativa de frear a matança em massa e a criação dos tribunais internacionais ad hoc, como os que julgaram os crimes na ex-Iugoslávia, Ruanda e Serra Leoa, entre outros.
Houve ainda um reaquecimento no debate sobre prevenção do genocídio a partir de 2004, com a realização do Quarto Fórum Internacional de Estocolmo para a Prevenção do Genocídio. Depois disso, o então secretário da ONU, Kofi Annan, anunciou a criação de um Adjunto Especial em Genocídio, com um plano baseado em soberania e responsabilidades como dimensões que balizariam uma intervenção militar em um país onde houvesse o crime.
Índios – O professor José Carlos Sebe Bom Meihy, do Departamento de História da FFLCH da USP, afirma que existe uma reivindicação para que determinados episódios de extermínios de indígenas sejam reconhecidos como crimes de genocídio. Segundo Meihy, há historiadores, como Darcy Ribeiro, que chamam o extermínio indígena no Brasil de genocídio.
Mas o conceito moderno de genocídio não pode ser aplicado aos diversos episódios de matança em massa ocorridos ao longo da história da humanidade, diz a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, também do Departamento de História da FFLCH, organizadora do seminário que tratou do genocídio armênio. “Para que a matança contra indígenas, sul ou norte-americanos, seja considerada genocídio, deve haver um reconhecimento mundial. Mas é difícil classificar esses fatos como uma matança arquitetada por governos, por exemplo”, afirma.
Este conteúdo foi publicado em 03/05/2010 no Sítio do Jornal da USP. Todas as modificações posteriores são de responsabilidade do autor original da matéria