Sociologia
15/06/2010
Trabalhar “até acontecer um milagre”
Por Ignatius Banda, da IPSBulawayo, Zimbábue, 15/6/2010 – Tapuwa Bakare*, de 12 anos, perambula entre os veículos desta cidade do sudoeste do Zimbábue. Alguns motoristas gritam para ele, outros tentam desviar dele. Parece um milagre que não caia de suas mãos a caixa de balas que vende. Bakare tem mais coisas em sua cabeça do que o trânsito desta cidade industrial: se não vende as balas, morre de fome. É um dos muitos meninos e meninas deste país que levam uma vida muito diferente da que deveriam ter na sua idade.
O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Onusida) afirma que 1.400 pessoas morrem por semana neste país da África austral por doenças relacionadas com a aids. Estima-se que há uma prevalência de 13,7% do vírus da deficiência imunológica humana (HIV, causador da aids) na população de 11,6 milhões de habitantes. Porém, apenas 215 mil pessoas recebem tratamento antirretroviral, essencial para reduzir a mortalidade, diz a Onusida.
Semelhante quantidade de mortes por aids criou uma subcultura da infância órfã que sobrevive nas ruas. Há mais de um milhão de crianças e adolescentes de até 17 anos que perderam pai e mãe para o HIV/aids, segundo o não governamental Zimbabwe Orphanage Project (Projeto Orfanato Zimbábue), que ajuda os órfãos pagando sua educação, uniforme escolar e alimentação. “Deixei a escola no ano passado, depois que meu pai morreu” de uma doença ligada à aids, disse Bakare. Desde então se arranja como pode nas ruas.
Em outro local do pujante distrito empresarial de Bulawayo, James Dube*, de 13 anos, ganha a vida lavando automóveis. “As pessoas são generosas, mas tenho medo de pedir mais do que me dão, porque poderiam preferir outras crianças para limpar seus carros”, disse Dube à IPS. Ele também ficou órfão por causa da aids. Começou este trabalho graças a um vizinho mais velho, e logo se deu conta de que com ele “está a salvo da falência”. Mas está cansado e gostaria de ir à escola.
Sua história de trabalho duro por pouco dinheiro é habitual. Como sempre ocorre com a infância que cresce nas ruas, há adultos que exploram o trabalho infantil, diante da ausência do Estado, afirma Getrude Makawa, ativista pelos direitos das crianças. Os órfãos da aids “crescem antes do tempo, e seu desespero é que sejam explorados pelos adultos. Como esperar que uma criança consiga tratamento justo?”, disse Makawa à IPS.
Sua própria abundância se volta contra eles, e competem pelos escassos meios de subsistência que encontram na rua, o que agrava o quadro, segundo Makawa. Tendem a aceitar qualquer pagamento, por medo de que outro menino faça o trabalho, inclusive por menos. As autoridades reconhecem que é impossível para o Estado ajudar os órfãos “porque a renda fiscal está zerada”.
“É um problema do qual estamos conscientes desde a década de 90, mas fracassamos em proteger essas crianças. Nossas funções são cumpridas em grande parte pelas organizações não governamentais”, disse à IPS um funcionário do departamento de Bem-Estar Social de Bulawayo, Hubert Molife. “Antes, famílias, pobres, órfãos e outros grupos vulneráveis tinham assistência do governo, mas tudo piorou com a crise econômica e agora nem se aproximam para pedir ajuda”, acrescentou.
O Zimbábue está imerso há anos em uma profunda crise econômica, marcada pelo colapso de seu outrora pujante setor agropecuário, hiperinflação e escassos investimentos.
As ONGs que cuidam da infância afirmam que o governo envia os casos diretamente a elas. “Assumimos apenas os recém-nascidos abandonados e crianças enviadas pelo departamento de Bem-Estar Social”, disse Saleem A. Farag, diretor da Newstart Children’s Home, de Harare. Entretanto, são muitos os que ficam fora de toda ajuda e acabam como vendedores ambulantes ou trabalhadores sexuais. E, naturalmente, carregam o trauma das perdas que viveram e do abandono que suportam, afirmam os técnicos.
As meninas e os meninos órfãos lamentam não ter suficiente “apoio psicológico e emocional” dos adultos, afirma um estudo feito em Bulawayo pelo Programa Horizontes da Iniciativa Regional de Apoio Psicosocial. Essa dinâmica levou Dube a se converter em “homem por si mesmo”. O mais velho de três irmãos não perde a esperança de que uma alma caridosa os recolha e os crie. Enquanto isso, lavar carro para comer é o que deve fazer, “até que ocorra um milagre”.
* Os nomes são fictícios para proteção da identidade dos menores.
FOTO - Crédito: Irin
Este conteúdo foi publicado em 14/06/2010 no sítio da Revista Envolverde. Todas as modificações posteriores são de responsabilidade do autor original da matéria.