Sociologia
03/01/2011
Os Trabalhos e os Dias
Plim-plim. Vassoura e pano nas mãos, toda terça-feira aparece a Marinete na telinha esfregando um pouco, lavando um pouco, ao som da música-tema que repete “ela é dona do jogo”, a personagem principal da rede Globo: uma diarista. Não é coisa pouca, nem tampouco muita coisa, é coisa pra ser notada, embora seu cenário seja limpo demais, geométrico demais, seus “colegas” brancos demais. Daí a idéia, ser faxineira na vida. Ver como é a rotina das mais de 5,3 milhões de pessoas, 93 por cento mulheres, que vivem de organizar, varrer, limpar, esfregar o que outros, sem tempo, com preguiça ou dinheiro demais para se dedicar a fazer, deixam pra trás. Fui procurar trabalho.O templo sagrado da peregrinação pelo emprego de baixa renda, aqui em São Paulo, é a rua Barão de Itapetininga, Centrão da cidade. Chego lá numa sexta-feira, 5 de novembro, manhã cedo, pra ver os cerca de vinte homens-sanduíche exibindo anúncios de trabalho, muitos deles com caixas de papelão aos pés, onde todo dia centenas de pessoas – homens e mulheres, eles de camisa, elas de calça jeans, blusa social – atiram seus currículos. Eu, desavisada, sem currículo nem nada, não tenho o que oferecer. A solução vem em pouquíssimo tempo: “Fazemos currículo a 1,50” “Xerox a 10 centavos a folha” “Fazemos currículo com foto”, são muitas placas, um enxame, de todas as cores. Sem um tostão no bolso, a primeira lição: procurar trabalho exige dinheiro.
As agências de emprego, das mais picaretas às mais sérias, se espremem nas ruas que cercam a Barão junto com oficinas de xerox e “composição” de currículo, fotos 3 x 4, médicos laborais, advogados trabalhistas e agências de empréstimo (“Sem dinheiro? Resolva já o seu problema! Não precisa de fiador” etc.). Meio zonza pela enxurrada de “oportunidades”, paro diante de uma parede forrada de anúncios de emprego, a maioria escrito à mão, pedindo vendedoras, operadoras de telemarketing, secretárias bilíngües, motoristas. Faxineira, nada.
Um senhor, aparentemente o “guardador dos cartazes”, calvo e barrigudinho, anda de um lado para outro, dizendo a quem quiser ouvir: “Tem muita coisa aí que não é séria, eles cobram para pegar seu currículo, vai nessa que é séria, vai nessa, eu conheço”. Confio no homem quando ele vem perguntar o que estou procurando.
– Faxineira.
– Tem experiência?
– Tenho, ô!
– Eu tenho um trabalho pra você. Um amigo meu tem um escritório aqui perto, mas é só pra o fim de semana, tudo bem?
– Tudo bem, eu preciso trabalhar.
– Então espera aqui que eu vou pegar a chave com ele, te levo lá pra você ver…
Vou? Não vou? A falta de anúncios procurando diarista, a necessidade de arrumar um trabalho me deixa refém dele, que volta já pegando no meu braço:
– Vamos?
É quando aparece, não sei de onde, uma negra corpulenta, elegante, toda vestida de azul, cabelo bem preso num rabo-de-cavalo. Pula na minha frente:
– Então eu vô junto.
– ?!?!
– Não é trabalho de faxinera? Eu também tô procurando, se você vai levá,
ela me leva junto.
Ele se afasta resmungando, e nisso ela diz pra mim, baixinho: “Vamo vê se ele não vai te levá pra algum canto, tá te enganando!” E estava. Desapareceu na multidão.
A heroína, Patrícia, me dá a próxima lição: “Todo mundo qué se aproveitá, fia, olho aberto!” Agradeço demais e ela se despede: “A gente se cruza por aqui”. “Tomara que não, né?”
Mas domingo tem classificados, e eu coloco um anúncio no Estadão que, mais por fidelidade à verdade do que por exibicionismo, sai meio esdrúxulo: “Diarista bilíngüe com experiência internacional. Preço a combinar. Tel. …”. Sonho com patroas podres de ricas e gringos solteirões que me chamarão para limpar seus palácios no Morumbi. E, afinal, na abertura de A Diarista, não é através de um classificado que a Marinete oferece sua força de trabalho?
Sonho meu: outra novela da Globo. Chovem ligações, sim, de gente interessada pelo classificado. Só que são mulheres, algumas desesperadas, procurando trabalho. Uma delas: “Nóis tá precisando de serviço com urgência, me liga, Deus te abençoe”. Os recados não param de chegar na caixa postal, e o que bate à porta não é trabalho, mas o desemprego em carne e osso. Não, essa reportagem não vai ser sobre “a vida de uma diarista”. Não tem escapatória: é sobre desemprego.
Segunda-feira volto à Barão, não sem antes ligar para dezenas de agências de serviço doméstico para ouvir, de muitas bocas, que já não há trabalho de diarista. Os patrões sumiram. Hoje, todo mundo quer empregada para dormir na casa. Em uma delas recebo um tiquinho de esperança. Só um detalhe: “…aparece aqui com currículo, RG, CPF, comprovante de residência e atestado de antecedentes criminais”. É assim: se quiser ser uma empregada “empregável”, tem de provar que não é bandida, o que é no mínimo humilhante (o Congresso Nacional aprovou em dezembro projeto de lei do deputado federal Luiz Alberto, do PT da Bahia, proibindo a exigência; agora, está no Senado), além de levar um tempo do diabo em filas da burocracia. Fazer o quê?
Na Barão, sigo as instruções da Patrícia, de me colocar “à disposição da agência” e pegar o trabalho que aparecer. Atiro currículos em todas as caixas e começo a peregrinação nas salinhas, uma por uma, para ouvir jovens recepcionistas repetindo: “Mora onde? Fuma? É casada? Tem filhos?”. E a vontade é fazer igual à personagem de uma anedota que, diante da pergunta, encarou o potencial patrão: “Sou mulher, sim. Tenho filhos. E o senhor, é capitalista? Então, eu sou a reprodução da mão-de-obra, mas não precisa agradecer!” Sigo na Barão e arredores até os pés doerem e a coxinha que almocei sustentar o meu corpo. Seis horas, volto para casa. Arrasada. O cansaço é enorme, é físico e é mental também. A terceira lição, muito útil nos dias que seguem: não dá pra pensar direito quando o corpo está exausto.
Os Trabalhos e os Dias - Parte II
Os Trabalhos e os Dias - Parte III
- Natalia Viana é jornalista investigativa independente.