Sociologia
05/03/2012
Heloísa Buarque de Almeida analisa a imagem da mulher
Cientista social e antropóloga, Heloísa Buarque de Almeida é especialista na área de Família e Gênero. Defensora dos direitos das mulheres, a pesquisadora afirma que, para entender ainda melhor o tema, decidiu questionar e estudar as desigualdades. A professora da Universidade de São Paulo (USP) revela que “há bastante procura e interesse nessa temática” por parte dos alunos que estudam a Teoria do Gênero, disciplina ministrada por ela no curso de Ciências Sociais.Em entrevista exclusiva ao Globo Universidade, Heloísa Buarque fala sobre a representação do gênero feminino na teledramaturgia, como na nova série da Rede Globo, As Brasileiras. A pesquisadora também analisa como a televisão contribuiu, ao longo dos anos, para construir determinados padrões femininos. “Ao final dos anos 1970 e nos anos 1980, começam a dominar nas novelas as ‘mulheres fortes’, corajosas, que trabalhavam fora e tinham profissão, além de serem glamourosas, bonitas, sensuais e boas mães”, destaca.
Globo Universidade - Você se graduou em Ciências Sociais, fez mestrado em Antropologia e doutorado também em Ciências Sociais. Quando surgiu seu interesse para atuar em pesquisas referentes a questões de gênero?
Heloísa Buarque - Quando eu fiz o meu mestrado em antropologia, na USP, fiz um estudo de recepção sobre cinema, entrevistando pessoas que tinham sido jovens em São Paulo nos anos 40 e 50 e tinham vivido a época áurea dos cinemas, das grandes salas de cinema no centro, ou nos bairros. Naquele trabalho, percebi que as trajetórias e experiências variavam muito entre homens e mulheres, e entre diferentes classes sociais. A questão de gênero ficou pendente na minha dissertação, eu não soube muito como interpretar essas diferenças, embora as notasse empiricamente. Foi por isso que estudei a área de “Família e Gênero”, do doutorado em Ciências Sociais na Unicamp, para poder entender melhor essa temática. No fundo, é também uma questão política – sempre fui muito defensora dos direitos das mulheres e sempre questionei as desigualdades. Mas quis refletir sobre o tema também na pesquisa, e isso virou central no meu doutorado que era sobre a interação do público com uma telenovela. No doutorado, eu fiz um projeto que se desdobrava de uma pesquisa mais ampla que eu tinha feito quando trabalhei no CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), que tratava da relação entre novelas e mudanças sociais associadas à família, gênero e reprodução. Meu doutorado aproveita, então, a pesquisa de campo que eu fiz com pessoas de camadas médias e populares em uma cidade do norte de Minas (Montes Claros), na qual fiz um estudo de recepção da novela “O Rei do Gado”. Nessa pesquisa, eu assisti a essa novela com algumas pessoas, e convivia com elas no cotidiano, pensando também toda relação entre novelas, gênero e consumo.
GU - Você pode falar um pouco sobre as atividades do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, o Pagu?
HB - O Pagu, no qual não estou muito presente agora, porque estou na USP, é um Núcleo de Pesquisa que congrega diversos professores e pesquisadores que trabalham com gênero, de várias áreas disciplinares. Ali, cada grupo ou pesquisador tem seu projeto, é um centro de produção de pesquisa e de publicação da revista científica Cadernos Pagu. É uma revista muito importante no cenário acadêmico da pesquisa sobre gênero, que divulga as pesquisas feitas na área, e também traduz textos teóricos relevantes desse assunto.
GU - Quais são as disciplinas ministradas por você na Universidade de São Paulo? Pode nos falar também sobre suas atividades como editora da Revista de Antropologia?
HB - Na USP, eu me integro ao Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS), em que buscamos tratar conjuntamente essa questão das diferenças sociais como gênero, raça, sexualidade, idade, classe. Além de ministrar disciplinas obrigatórias da grade do curso de Ciências Sociais, eu também ofereço as disciplinas sobre gênero, uma na graduação, e outra no programa de pós-graduação em Antropologia Social, da USP. Nessas disciplinas, eu faço um panorama sobre teoria de gênero, e tenho alunos que são das Ciências Sociais. Mas tenho alunos que vêm também de várias outras áreas, especialmente das Humanas, como por exemplo, de História, Letras, Psicologia, Pedagogia, Direito, Relações Internacionais, Medicina. Às vezes os alunos têm disciplinas afins na sua área, como caso do pessoal da Faculdade de Educação, mas eles vêm complementar a formação comigo. Há bastante procura e interesse nessa temática.
GU - Na série “As Brasileiras, atrizes do Brasil interpretam mulheres de determinadas regiões do país, cada uma com uma característica singular. Em sua opinião, como a diversidade cultural pode influenciar homens e mulheres?
HB - Há uma diversidade cultural, e principalmente uma diversidade imensa de condições de vida das mulheres. Ser mulher é muito diferente em cada região do país, mas varia também em termos de cor, classe social, acesso à educação, religião, geração, sexualidade, etc. Uma jovem pobre da periferia de São Paulo vive condições muito diversas se comparada a uma moça rica de uma cidade do interior, por exemplo, que é também muito diversa da situação da sua avó. Além disso, há certamente variações culturais importantes, o que é valorizado em cada contexto. Por exemplo, para algumas moças de classe popular no Brasil, ser uma jovem bonita e sensual pode ser uma forma de ascensão social (a única talvez) através do corpo e do rebolado, que não é valorizada em uma classe social mais elevada, na qual a chance de estudo, formação e trabalho é muito maior. Não é uma diferença de “estados”, não há uma “cultura” paulista, nem uma mulher paulista, mas a diversidade regional no Brasil é inegável. No entanto, é possível notar também consensos em torno de alguns valores, que se expandem para além de cada lugar, como, por exemplo, o fato de que no Brasil se valoriza e se considera positivo que as mulheres trabalhem fora.
GU - Na sua opinião, como a mídia contribui para a construção do gênero feminino? De que forma a teledramaturgia tem ajudado a sociedade a questionar padrões sociais?
HB - Em primeiro lugar, gênero trata de construções sociais, históricas, culturais do que é visto como feminino e masculino. Do ponto de vista da teoria que eu ensino e com a qual trabalho, ser mulher e como se comportar em uma sociedade é algo que não é determinado pelo corpo ou pela biologia, mas é um aprendizado cultural (Por isso Simone De Beauvoir dizia, “não se nasce mulher, torna-se mulher). Ou seja, ser mulher, ou ser homem, varia muito em cada sociedade, em cada época. Se na época da minha avó era preciso que uma mulher de camada média, para se casar, fosse recatada, soubesse costurar e cozinhar, esse era um valor que já não permanece mais na nossa sociedade. Mas essa situação fazia com que as mulheres de baixa renda na época tivessem que, por necessidade, trabalhar fora – como empregadas, babás, cozinheiras, lavadeiras, passadeiras e até como prostitutas. Esse trabalho não era bem visto, mas era inevitável. Havia assim uma construção ideal da feminilidade que não cabia na realidade das mulheres mais pobres, que tinham que trabalhar para sustentar a família. Elas estavam excluídas da feminilidade ideal da época.
De onde vêm essas construções culturais ideais? Elas vêm da família, da religião, da escola, das chamadas “instituições sociais”, digamos assim. E isso varia muito em cada cultura, e ao longo da história. Nos anos 1940/50, por exemplo, o cinema de Hollywood foi um dos lugares de produção dessas construções de gênero, definindo, por exemplo, padrões de beleza, de moda, e mesmo de comportamento, inclusive sexual. A moça tinha ser sensual, mas no limite, recatada e preferencialmente casar virgem.
Hoje, no Brasil, e isso desde os anos 1970, a televisão é um dos lugares de construção desses padrões femininos ideais. Nos anos 1970, as heroínas das novelas tinham que ser relativamente recatadas e sofredoras – havia um padrão de novelas e uma censura forte controlando o que poderia ser dito e mostrado na TV. Ao final dos anos 1970 e nos anos 80, isso muda radicalmente: começam a dominar nas novelas as “mulheres fortes”, corajosas, que trabalhavam fora e tinham profissão, além de serem glamourosas, bonitas, sensuais e boas mães. Eu acho que essa é uma fase de transformação na construção de gênero na TV brasileira (e consequentemente no Brasil) e, por isso, atualmente tenho estudado o seriado “Malu Mulher”, que é visto como “pioneiro” nesse sentido.
A partir dos anos 80, a moralidade sexual vai mudando, primeiro nos grandes centros urbanos, como no Rio de Janeiro e São Paulo. De modo que nos anos 90 o ideal feminino é o que chamei de “super-mulher” – é boa esposa, boa mãe, trabalha fora, deve ler linda, se cuidar, cuidar da casa, e também ser sensual. Isso não está só nas novelas - está também nos anúncios publicitários, nos filmes, revistas, e outros bens culturais que a gente consome. Temos um padrão de beleza feminino muito cruel – a mulher tem que ser linda, magra, elegante, não envelhecer – e para isso se cria um imenso mercado de cosméticos, dietas e cirurgias plásticas.
Essa construção ideal se dá sem ter sido planejada necessariamente por alguém, mas o fato é que a novela, por exemplo, foi incorporando a ideia de uma relativa liberdade sexual feminina e do trabalho feminino como valor (as “Helenas” de Manoel Carlos, por exemplo, são sempre mulheres com vida profissional estabelecida). O perturbador, é que, no entanto, continua-se achando que quem cuida dos filhos e da casa tem que ser a mulher - por isso, todos os anúncios de produtos alimentícios e de limpeza são direcionados à “dona de casa”, ou a uma mulher. Não incorporamos, por exemplo, outros valores que vieram do feminismo e estão mais presentes em outros países, como a divisão do trabalho doméstico. Estamos, aos poucos e lentamente, colocando os homens também para cuidar das crianças, mas dificilmente como “donos de casa”.
Assim, há esse ideal feminino que permeia todas as classes sociais – de modo que a mulher que não é bonita é vista como “desleixada”; aquela que não trabalha, é vista como incompetente ou preguiçosa. Mas não há UM só tipo. A mídia e o imaginário social foram permitindo cada vez mais certas diversificações – tanto que é possível dizer que as jovens hoje têm mais possibilidades de estilos diversos do que antes - hoje a menina pode jogar futebol, por exemplo, o que, quando eu era menina, era impossível. Hoje há mais nuances, embora os modelos “moça de família” ou “biscate” ainda existam socialmente, e ainda exista muito machismo e desigualdade social.
GU - O machismo é um dos grandes problemas enfrentados pelas mulheres até os dias de hoje, sobretudo em relação a algumas profissões no mercado de trabalho e em algumas culturas. A seu ver, por que ele ainda persiste em nossa cultura, em pleno século XXI?
HB - Ainda há muito machismo no Brasil e no mundo. Algumas coisas ainda me chocam muito. O nível de violência doméstica ainda é muito alto no Brasil. Ainda se acha normal que o homem (veja, essa é uma construção cultural de gênero) seja agressivo em algumas ocasiões. Assim como na sexualidade, em que o impulso sexual é naturalizado para os homens: eles são vistos como “naturalmente” infiéis, por exemplo. Mas voltando à questão da violência doméstica, ainda se imagina que uma mulher pode ficar chata e “mereça” apanhar, e que deve aguentar calada. E é por isso que fizemos uma lei mais dura, a chama “lei Maria da Penha”. Temos ainda muitos casos de mulheres que denunciam a violência do (ex) companheiro, e a polícia ainda não leva isso a sério. Depois vemos essas notícias de assassinatos brutais, descobre-se que a moça assassinada já vinha lutando, mas que não teve apoio nem na delegacia de mulheres. É preciso lembrar que essa violência acontece em TODAS as classes sociais. E sim, ainda há muito por vencer também no mercado de trabalho.
GU - A seu ver, no que a mulher brasileira se difere das mulheres ao redor do mundo? O que você acha, por exemplo, das mulheres no mundo árabe?
HB - Sim, as mulheres brasileiras diferem entre si – ser índia no Norte do país, ser uma mulher urbana de classe média com alta escolaridade, ser doméstica migrante, são situações muito variadas e que, muitas vezes, inclui várias nuances nos padrões de gênero. E fora do Brasil, há países que enfatizam muito mais, por exemplo, o trabalho e a carreira feminina e se promove muito mais uma divisão melhor do trabalho doméstico (como na Europa). Em outros países, como o México, o trabalho feminino fora de casa ainda é um tema polêmico, ao passo que o padrão de beleza é fortíssimo e constrangedor. Quanto às mulheres islâmicas, acho que há muito preconceito nosso e ainda pouco conhecimento da sua situação real, mas é preciso lembrar que lá também existe movimento feminista, por exemplo.
Mas, no Brasil, por exemplo, se eu disser para você que sou feminista, você já pode imaginar uma mulher “feia”, mal-amada, que não gosta de homens e que é grossa. Há um preconceito terrível. As moças acham que não precisam mais de feminismo, mas não sabem que foi por causa dele, por exemplo, que as mulheres não precisam mais casar virgens, como acontecia há uma ou duas gerações, que elas podem ter acesso a meios de contracepção e adiar a maternidade, entre outras coisas. Muitas vezes as pessoas acham que o feminismo é cruel porque, no Brasil, as mulheres têm que trabalhar fora e dar conta da casa, mas não sabem que o feminismo pregava a divisão do trabalho doméstico, por exemplo, coisa que ainda vemos pouco aqui.
Esta reportagem foi publicada em 03/02/2012 no sítio do redeglobo.globo.com/globouniversidade/ .Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.