Disciplina - Sociologia

Sociologia

16/04/2012

Reforma social ou revolução?

Ricardo Musse
Aproveitando o ensejo da publicação, no semestre passado, de uma alentada seleção, em três volumes, de textos de Rosa Luxemburg, seguem algumas observações sobre o primeiro livro da série, que aborda uma questão ao mesmo tempo perene e atual.
Parte da força e do impacto do “revisionismo” na passagem do século XIX ao XX deriva do fato de que não se tratava de mais um projeto de reformulação do marxismo oriundo do campo burguês, mas de uma autocrítica levada adiante por um dos expoentes da Internacional Socialista. Integrado à social-democracia alemã desde 1872, discípulo e amigo de Engels (que lhe legou seu testamento literário, isto é, a responsabilidade pela edição dos textos ainda inéditos seus e de Marx), o renome de Eduard Bernstein, a sua importância no processo de constituição de um marxismo autóctone no âmbito da Segunda Internacional, exigiu um combate redobrado por parte da ortodoxia partidária, tarefa desempenhada, concomitantemente, por Karl Kautsky e Rosa Luxemburg.
Apesar do sucesso do Anti-Bernstein de Kautsky,[1] comprovado por sua tradução imediata em diversos idiomas, a réplica às teses de Bernstein exposta por Rosa Luxemburg em Reforma social ou revolução? consagrou-se – tanto entre os contemporâneos quanto perante à posteridade – como a mais ardorosa e competente refutação do “revisionismo”.
Recém-chegada à Alemanha e à vida partidária, após se doutorar na Suíça sob a orientação de Julius Wolf com uma tese sobre o desenvolvimento industrial na Polônia,[2] Rosa Luxemburg demonstrou, nessa sua primeira intervenção, não só, como se esperava, um profundo conhecimento do funcionamento da economia capitalista (contestando Bernstein num terreno onde era evidente sua fragilidade), mas também um insuspeito pendor teórico. Seu domínio da obra de Marx, a facilidade e a segurança com que aplica os princípios da doutrina aos diferentes casos específicos, aliados a um estilo marcado pela clareza e concisão (elementos decisivos numa polêmica), fizeram desse livro um sopro rejuvenescedor da ortodoxia marxista.
Escritos no calor da hora, quase ao mesmo tempo em que Bernstein redigia Os pressupostos do socialismo e as tarefas da social-democracia, os artigos de Rosa Luxemburg não se ocupam propriamente das premissas do marxismo submetidas, por Bernstein, ao exame e à revisão crítica. Apesar dessa recusa (pouco importa se deliberada ou não) em pautar a discussão em termos doutrinários ou exegéticos, o ponto mais destacado de Reforma social ou revolução? foi a determinação dos nexos que permitem conjugar um programa de reformas com a luta por objetivos revolucionários. A resolução que propôs para essa questão constitui um nítido esforço para recompor a fenda provocada no interior do marxismo pela separação completa entre esses dois procedimentos estabelecida pela prática reformista.
Procurando evitar as armadilhas do raciocínio abstrato que induziu Bernstein a desvincular reforma de revolução, “emancipação econômica” de “luta de classe política”, reposicionando-os como formas de combate distintas e até mesmo antagônicas, Rosa Luxemburg reconstitui historicamente as modalidades de articulação entre essas duas táticas. Seja na ascensão da burguesia ou, de modo geral, na história das lutas de classe, a camada ascendente serviu-se sempre tanto da reforma (enquanto meio de se fortalecer) quanto da revolução (como forma de se apossar do poder político). Nessa perspectiva, a relação entre esses dois métodos de luta, longe de ser indiferente, configura uma vínculo de complementaridade dialética. Trata-se, nas suas palavras, de “fatores diferentes do desenvolvimento da sociedade de classes, que condicionam e complementam um ao outro igualmente, porém, ao mesmo tempo, excluem-se, assim como, por exemplo, o polo Sul e o polo Norte, a burguesia e o proletariado”.[3]
A opção dos revisionistas por uma única alternativa, o descarte da estratégia revolucionária decorre, segundo Rosa Luxemburg, de uma avaliação que atribui à política de reformas um potencial de transformação social que ultrapassa em muito sua capacidade real. Primeiro, porque o conteúdo e o sentido das reformas são predeterminados pelo arcabouço legal, por uma constituição cujos delineamentos gerais normalmente apenas ratificam os princípios da revolução precedente:
O esforço pelas reformas não contém, em si, força motriz própria, independente da revolução; em cada período histórico ele apenas se movimenta sobre a linha, e pelo tempo em que permanece o efeito do pontapé que lhe foi dado na última revolução ou, dito de maneira concreta, apenas no quadro da forma social criada pela última transformação.[4]
Além disso, por mais bem executada que seja ou por mais favoráveis que sejam as condições para sua implementação, essa política nunca levaria à supressão do capitalismo porque deixa intocada a base da desigualdade social no mundo burguês: o regime de assalariamento. Afinal, a dominação do capital não se assenta em direitos adquiridos ou em outra forma jurídica qualquer, porém, numa relação econômica na qual “a força de trabalho desempenha o papel de mercadoria”, fato esse em si perfeitamente compatível com uma situação de igualdade jurídica e política.
Com tais argumentos, matriz de diversas vertentes de discursos revolucionários ao longo do século XX, Rosa Luxemburg imagina ter debelado a ameaça de desagregação do campo marxista representada pelo revisionismo. Entretanto, Reforma social ou revolução? não pode ser considerado apenas como um libelo genérico em defesa da unidade do marxismo. Em geral, as teses que ela contrapõe ao revisionismo, bastante afinadas com a concepção teórica e a prática política predominantes na social-democracia alemã, também contribuíram para legitimar (em nome de um compromisso com a revolução que, diga-se de passagem, o SPD no decorrer do tempo manteve apenas no papel) a linha programática implementada pela direção partidária e teorizada por Kautsky.
Embora os ensinamentos da história pareçam suficientes para elucidar o nexo entre reforma social e revolução, desmontando a exigência bernsteiniana de uma escolha dicotômica entre esses encaminhamentos, permanece ainda em aberto a seguinte questão: a eficácia da tática do SPD, centrada na luta por direitos (políticos, trabalhistas e mesmo de associação econômica), não justificaria, como quer Bernstein, um programa de reformas positivas que eleve ao primeiro plano as tarefas imediatas até então relegadas à condição de simples meios para se atingir o objetivo final, noutras palavras, o trabalho de organização e esclarecimento da classe operária não deveria estar orientado por uma ênfase nas reformas?
Aqui, a consulta aos modelos do passado já não basta, pois a proposta de Bernstein de reformulação da doutrina política da socialdemocracia apresenta-se como uma correção de rumos determinada pela modificação do padrão de desenvolvimento do capitalismo. Tampouco vale o argumento, meramente retórico, mas reiterado em quase todos os artigos, segundo o qual os revisionistas decidem entre uma ou outra tática levando em conta apenas critérios subjetivos tais como a comparação entre vantagens e inconvenientes de cada forma de luta.
Rosa Luxemburg não ignora isso. Muito pelo contrário, logo no início do livro adverte que
“o essencial dos argumentos de Bernstein não se encontra, em nosso entendimento, em seus pontos de vista sobre as tarefas práticas da social-democracia, mas sim naquilo que ele diz sobre o curso do desenvolvimento objetivo da sociedade capitalista, com a qual esses pontos de vista estão estreitamente associados.”[5]
Bem pesada, essa afirmação traduz mais que uma informação acerca dos pressupostos da teoria econômica e política do socialismo reformista, pode ser vista também como um anúncio do terreno em que Rosa levará adiante a discussão com Bernstein.
[1] Abreviatura pela qual ficou conhecida a coletânea Bernstein und das sozialdemokratische Programm. Eine Antikritik.
[2] Para uma breve apresentação da trajetória política e intelectual de Rosa Luxemburg confira BADIA, Gilbert. “Socialdemocracia alemã e imperialismo” ou então ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios, p. 37-55.
[3] LUXEMBURG, Rosa. Reforma social ou revolução?, p. 68.
[4] Idem. Ibidem, p. 68.
[5] Idem. Ibidem, p. 6.
Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

Esta reportagem foi publicada no sítio da Boitempo Editorial em 09 de Março de 2012. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade do autor.
Recomendar esta notícia via e-mail:

Campos com (*) são obrigatórios.