Sociologia
22/10/2007
Primeiras cidades, primeiros massacres
Primeiras cidades, primeiros massacres, artigo de Fernando Reinach“Com a cidade, os bens materiais passaram a valer o suficiente para justificar grandes guerras. Cinco mil anos depois, no mesmo território, os homens ainda estão guerreando por bens materiais, no caso o petróleo do Iraque”
Fernando Reinach é biólogo. Artigo publicado no “Estado de SP”:
As primeiras cidades surgiram há 6 mil anos entre os rios Tigre e Eufrates. Uma das cidades mais estudadas é Uruk, localizada ao sul de Bagdá, no Iraque. Com as guerras na região, os arqueólogos foram forçados a concentrar seus esforços em sítios arqueológicos mais ao norte e, para espanto geral, encontraram diversas cidades da mesma época.
Talvez os resultados mais interessantes sejam os encontrados em Tell Brak, um sítio arqueológico no leste da Síria, quase na fronteira com o Iraque. Lá provavelmente ocorreu uma das primeiras batalhas pela conquista de uma cidade.
Tell Brak surgiu 5 mil anos atrás em uma pequena colina que ocupa a área de cinco quarteirões modernos. Entre 4.200 e 3.900 anos atrás ela se expandiu para uma área equivalente ao Jardim Europa da São Paulo atual.
Não se sabe quantas pessoas viviam ali, mas a presença de grandes quantidades de matérias-primas importadas, como obsidiana, um material vulcânico vitrificado, que não existe na região, sugere que existiam pequenas “fábricas” de utensílios e tecidos na cidade. Por volta de 3.600 anos ocorreu uma mudança no tipo de vasos produzidos em Tell Brak. Os vasos da cultura original desapareceram e foram substituídos por utensílios semelhantes aos encontrados em Uruk.
Há dois anos, uma empresa decidiu construir um depósito de cereais em uma região ao sul da colina de Tell Brak. Para proteger o depósito dos ratos, cavaram trincheiras em volta da construção.
Ao encherem as trincheiras com veneno, os empreiteiros se depararam com uma enorme quantidade de esqueletos. Recentemente, arqueólogos obtiveram permissão para escavar a área e já estudaram quase uma centena de esqueletos encontrados no que parece ser uma enorme cova coletiva com centenas ou milhares de esqueletos de pessoas que morreram em uma batalha.
Os esqueletos de jovens e adultos apresentam sinais claros de violência, como fraturas de crânio e ossos partidos. Além disso, a ausência das extremidades, dedos e mesmo mãos, e o fato de as cabeças terem se destacado do corpo ao serem enterrados sugere que os mortos foram coletados de maneira descuidada vários dias ou semanas após a morte. Tudo indica que uma feroz batalha foi travada nas fronteiras de Tell Brak.
Até o momento não se sabe se os atacantes ou os moradores da cidade foram os vencedores, mas parece que houve uma grande festa após a batalha. Na camada imediatamente superior aos corpos foi encontrada uma grande quantidade de ossadas de animais domésticos queimadas e utensílios de cerâmica, sugerindo que os vencedores comemoraram a vitória com um enorme churrasco coletivo. Os restos da festança foram enterrados juntamente com os mortos.
As pesquisas ainda estão em seu estado inicial e muitas novas informações devem ser obtidas nos próximos anos. O que é certo é que Tell Brak sobreviveu a essa guerra por mais 200 anos e o local foi abandonado por seres humanos por volta de 3.400 anos atrás.
O interessante é que com o surgimento das primeiras cidades provavelmente surgiram pela primeira vez disputas ferrenhas por uma dada localidade.
Enquanto as populações humanas eram nômades, era fácil para o grupo atacado fugir abandonando os acampamentos e poupando vidas. Com a cidade, os bens materiais passaram a valer o suficiente para justificar grandes guerras. Cinco mil anos depois, no mesmo território, os homens ainda estão guerreando por bens materiais, no caso o petróleo do Iraque.
(O Estado de SP, 18/10)
Fonte: Jornal da Ciência, SBPC, 18 de outubro de 2007