Sociologia
06/05/2012
Pichação, a marca da desigualdade social
Por Maíra Kubík ManoSe a nossa pesquisa de público não estiver errada, boa parte dos leitores de Le Monde Diplomatique Brasil não tem muita familiaridade com a realidade dos pichadores. Talvez muitos achem que as letras estreitas e pretas que marcam os prédios de São Paulo colaboram para deixar a cidade com um aspecto sujo ou poluído. Para os irmãos João Wainer e Roberto T. Oliveira, porém, essa é uma autêntica manifestação da periferia paulistana. “É o protesto de quem recebe tudo o que tem de pior”, diz Wainer, que há anos fotografa essas “quebradas”. “Tudo é horrível: a escola, o hospital, a convivência com a polícia. As famílias são complicadas. Quando eles se expressam de alguma maneira, não dá para fazerem um troço bonitinho”. Nem legível, ao que tudo indica: “A pichação é sofisticadíssima. Criou um código que não é feito para a sociedade entender, mas sim para o parceiro da quebrada”, completa.
Foi com o intuito de desvendar para um público mais amplo esses quase hieróglifos paulistanos que eles fizeram o filme Pixo. A produção, que recebeu menção honrosa da última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é um dos assuntos dessa entrevista, assim como as polêmicas pichações no Centro Universitário Belas Artes e na Bienal de São Paulo.
Le Monde Diplomatique brasil – Por que vocês afirmam que “pixo” não é grafite?
João Wainer – O grafite nasceu em Nova York nos anos 1970 com o Wild Style, que é aquela letra gordinha, colorida, trançada. E daí foi para o mundo inteiro. O pixo, porém, se desenvolveu completamente separado, sem informação nenhuma sobre aquele movimento que vinha dos Estados Unidos. Sua história em São Paulo é totalmente diferente daquela do grafite. Basta ver o formato das letras, que é reto e anguloso, com uma cor só.
Roberto T. Oliveira– Na verdade, o pixo é a única vertente da pintura de rua que não foi influenciada pelo Wild Style.
Diplomatique – Mas por que isso ocorreu justamente em São Paulo?
Wainer – As primeiras pichações foram as políticas, contra a ditadura. Depois, o pessoal do movimento punk começou a fazê-las para demarcar o território, como algo de protesto. Há alguns casos isolados como, por exemplo, o “Cão Fila km 26”.
Esse era um cara que tinha um canil e pichava a cidade inteira com “Cão Fila km 26” como uma propaganda do negócio dele, era um marketing viral. A partir daí a molecada da periferia começou a criar as suas gangues e a pichar pela cidade inteira.
O traço reto e anguloso tem um pouco a ver com a arquitetura da cidade. São Paulo é uma cidade toda reta. É o que o Choque, fotógrafo, fala no filme: os pichadores veem a cidade como um caderno de caligrafia gigante, com linhas guias entre os andares, nas muretas.
Diplomatique – É um caderno em branco.
Wainer– Sim. Eles vão pintando como se fosse um caderno de caligrafia, com aquela letra que vai até em cima e volta.
Oliveira – Além disso, o pixo é uma comunicação fechada, entre eles. Também tem protesto, claro, mas é diferente. Eles pintam algumas casas a partir da informação que têm. Eles lêem aqueles jornais populares e vão marcar a casa de quem cometeu um assassinato. Mas o principal é o ego, o ibope: eles querem pichar no lugar que os outros vejam.
Diplomatique – O ato de pichar já é um protesto?
Wainer – Eu acho que é um protesto instintivo. Ele faz para aparecer. É uma resposta a tudo de ruim que ele recebe da sociedade, mas que não tem preparo para conceituar. Além disso, é uma atitude coletiva, uma consciência coletiva dos pichadores, que seguem protestando.
Diplomatique – Mas não é um protesto organizado.
Wainer– Não, não é um protesto organizado. A pichação é anarquia, não tem lei, não tem regra.
Oliveira– Nada na pichação é organizado. Não existe essa palavra para eles. Muitas vezes os pichadores não têm nenhum plano: eles identificaram um prédio, chegam e vão subindo. Aí no meio é que percebem como é que vai ser. Seria mais fácil se eles bolassem estratégias, mas eles não pensam nisso. Nem para pichar, nem para escapar da polícia. É tudo muito instintivo.
Diplomatique – Ou seja, não há um horizonte de transformação mais profunda da sociedade.
Wainer– Eu acho que a transformação que ocorre com o pichador é outra. Enquanto é o moleque na quebrada, quietinho e que não faz nada, ele não é ninguém. É um cara meio invisível. Mas quando começa a pichar, ele passa a ser alguém, a ter um status.
Oliveira– Muitas vezes ele não tem dinheiro para pegar um ônibus, mas no nicho dele ele é o cara.
Wainer – Exatamente. Ele passa a ter valor e a partir daí aumenta a sua autoestima. Ele começa a achar que existe a partir do momento em que escreve seu nome numa parede alta e que os moleques da quebrada passam de ônibus e veem.
Diplomatique – E isso é o suficiente?
Wainer – Para eles já é alguma coisa. Não tem nada pior do que você ser ignorado. É melhor ser odiado do que ser ignorado. É essa a opção que eles fizeram.
Diplomatique – E as classes média e alta os odeiam?
Wainer– Odeiam. Todo mundo odeia.
Diplomatique – No “Pixo” tem uma cena que vocês gravaram durante a pichação do Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo, em 2008. Um dos alunos chega para pintar um painel em branco com spray, que seria o trabalho de conclusão de curso dele, e uma mulher o agride com um buquê de flores, aos gritos. É assim que a sociedade reage?
Wainer– É. Eu acho mais chocante ainda a reação das outras meninas que estão na porta da Belas Artes. Em geral, ninguém parou para refletir e isso ocorreu em uma faculdade de arte. Parecia que todos ali cursavam economia ou algo do tipo.
Oliveira – Ninguém nem pensou em entender. Todos os alunos estavam muito revoltados com a faculdade. Foi essa reação careta dos estudantes que mais me impressionou. O “Pixo” traz o depoimento de algumas meninas criticando a escola por ter dado uma bolsa de estudos para o pichador. Esse era o xis da questão. Não era só o fato de ele ter pintado. Se fosse um aluno pagante o problema pesaria muito menos. É evidente o preconceito pelo fato de ele ser bolsista. Mas na hora de julgá-lo ninguém considerou os quatro anos que ele ficou lá sem nada que desabonasse sua conduta. Ele nunca fez nada de errado na escola e se sacrificava para estar lá.
Diplomatique – Mas acho que essa questão da pichação dos espaços, digamos, artísticos ganhou outra dimensão quando foi para a 28ª Bienal de São Paulo, em outubro do ano passado.
Wainer– Sim. Causou um debate, mas não com o pessoal da Bienal. O debate foi fora. O pessoal da Bienal também não quis conversar, nem tentar entender.
Oliveira– Pelo contrário, quiseram prender e processar os pichadores.
Wainer– O que eu acho engraçado é que era um andar vazio, com tudo em branco. Eles estavam pedindo para ter algum tipo de interferência. Mas se a interferência viesse de um moleque de classe média, de um playboyzinho que estivesse lá, colasse um adesivo e pintasse alguma coisa não teria o mesmo problema que com os caras da favela. A questão é que eles são da periferia, são pichadores. Se fosse outro tipo de intervenção na Bienal não teria esse tipo de discussão.
Diplomatique – Essa mesma rejeição acontece com o rap?
Wainer– Claro. Isso porque o sentimento do rap é o mesmo do pixo, ambos são manifestações da periferia. É o protesto do cara que recebe muita coisa ruim na quebrada. Tudo é horrível: a escola, o hospital, a convivência com a polícia. As famílias são complicadas. Às vezes o pai é alcoólatra. Esses moleques convivem com o que tem de pior e quando se expressam de alguma maneira, não dá para fazerem um troço bonitinho. Não tem como. Imagine o Mano Brown fazendo um troço bonitinho. Nunca.
Diplomatique – Mas é uma produção elaborada.
Wainer– Claro. A pichação é sofisticadíssima. No dia em que o diretor da Fundação Cartier viu a primeira pichação feita pelo Djan Ivson, brasileiro convidado para expor em Paris, achou genial. É muito sofisticado criar um código que não é feito para a sociedade entender, mas sim para o parceiro da quebrada. E usar a cidade como suporte, como mídia, também é algo muito elaborado.
Diplomatique – E a pichação dá acesso a uma cidade que por outros meios eles não conseguem interagir?
Wainer– Sim. Quando o moleque vai para o centro e picha o nome dele numa parede, se torna alguém importante porque é um lugar que ele não tem acesso e mesmo assim a marca dele está lá, no alto do prédio. Isso aí o faz virar outra pessoa.
Diplomatique – A essência desse sentimento está também na ilegalidade da pichação?
Oliveira – Se for legal não é pichação. É como esse exemplo da Fundação Cartier, que recebeu uma representação do pixo: aquilo já não era mais autêntico. Até porque essa é uma atividade que talvez não tenha o mesmo sentido fora do Brasil. Fazer pixo é na rua, o que eles fazem na galeria é artes plásticas. Veja Os Gêmeos: eles fazem exposições maravilhosas, incríveis, mas é na rua que eles estão cada vez mais viscerais, pichando somente letras. Pixo na galeria só se for invadido, ilegal.
Diplomatique – O pixo pode ser considerado uma rebelião silenciosa em São Paulo?
Oliveira – Bom, fizemos o filme também para dar oportunidade para as pessoas perceberem um pouco mais a cidade. Me causa arrepios ver todo muito andando com os vidros dos carros fechados, com nojo de São Paulo, como se fosse uma paisagem feia. É preciso começar a percebê-la e entendê-la. São Paulo está inteira pintada. Quando um gringo chega pelo aeroporto de Guarulhos, a primeira coisa que ele vê é a Via Dutra e o dique do rio Tietê pichados.
Diplomatique– A pichação vai evoluir para algum lugar?
Oliveira – Sempre vão tentar acabar com ela. No nosso país, em que não há acesso nem à educação, em que não há um caminho até faculdade, os moleques só enxergam a vida na quebrada. Para dar um exemplo dessa situação, um dos moleques que entrevistamos no filme é analfabeto, mas sabe ler pichação. Ele não entende letra de fôrma, mas decifra rapidamente uma parede pintada. Se os pichadores evoluírem, melhorarem de vida e começarem a pensar de outro jeito, a tendência é que o movimento acabe, pois a cidade vai se transformar numa coisa melhor.
Wainer – Quando o grafite começou em Nova York, nos anos 1970, era um momento de crise econômica. A criminalidade estava em alta e a polícia tinha mais o que fazer do que correr atrás de grafiteiro. Eles até faziam um pouco de vista grossa. E aí o grafite dominou Nova York. Só nos anos 1990, sob a administração do Rudolph Giuliani, os policiais começaram a combater os grafiteiros. E deu resultado: conseguiram reduzir muito sua intervenção na cidade. São Paulo está hoje no mesmo ponto em que Nova York nos anos 1970: a polícia tem mais o que fazer. Eu imagino que mais para frente, quando São Paulo resolver boa parte dos problemas que tem, pode ser que eles comecem uma política mais forte contra a pichação. Mas depende muito do governo e de suas prioridades.
Oliveira– É engraçado isso. Quando fomos com o Djan para Paris, achamos que ele ia pintar lá. Mas quando perguntamos se picharia ele respondeu: “Não tenho vontade, essa cidade é tão bonita. Não tem a ver aqui. Talvez na periferia”. Além disso, a pressão lá é violenta. Em algumas cidades não, mas na maioria das grandes capitais europeias a polícia infiltra gente no meio dos pichadores. Os caras têm muito medo, inclusive. Os artistas de rua nesses lugares estão muito cerceados, estão muito reprimidos. A exceção é Berlim, que é uma cidade de artistas. Aliás, existem três grandes centros hoje de arte urbana no mundo: São Paulo, Berlim e Melbourne, na Austrália.
Diplomatique – Então quem está lá fora vê o pixo aqui em São Paulo com outros olhos.
Oliveira – Tem gente que vem a turismo aqui para ver o pixo. Tem um dinamarquês que veio a São Paulo e aprendeu a fazer a letra do pixo. Agora ele viaja a Europa pichando. Ele picha São Paulo na Europa. Assim como ele, muitos alunos, professores, gente ligada à arte vem para cá para estudar a pichação.
Diplomatique – Pixo é uma arte masculina?
Wainer– Não, algumas mulheres fazem pichação. São poucas, duas ou três se destacam. É um ambiente bem democrático. A menina só tem que ganhar o respeito dos caras. Se ela começar a pichar bem e muito, é aceita no grupo. A questão é volume. Se alguém realmente for para a rua e começar a destruir a cidade, eles acolhem. Mesmo que seja playboy. Basta identificar a marca do outro na rua.
Diplomatique – E como é que eles têm esse parâmetro do quanto alguém pichou?
Wainer– Andando pela rua, olhando, prestando atenção.
Oliveira– É, nesse caso não dá para mentir. Você não pode chegar na quebrada e dizer que pichou a cidade inteira porque os caras vão descobrir. O movimento deve ter umas mil pessoas participando ativamente, eles sabem de tudo. É muita gente. E os caras vivem para isso, dedicam-se à pichação. Eles sabem aonde foi, quem estava junto, se ficou bom ou não.
Diplomatique– Alguns pichadores falam no documentário que o que eles fazem é anárquico. E eles reivindicam isso de fato?
Wainer– Mais ou menos, eles não sabem direito. Eles saem para zoar e querem ver o que vai dar.
Oliveira– Eles não sabem exatamente o que é a anarquia. A palavra certa para eles é mesmo a zoeira. Porque é um pouco de fase também, de almejar a liberdade. Eles são moleques e querem curtir a vida, não têm preocupação com nada, as responsabilidades são menores. Eles curtem a adrenalina. Quando estiverem casados, com emprego e família não vai ser a mesma coisa. Agora eles têm 15, 16, 17 anos, faz parte da juventude.
Diplomatique– O pixo é uma coisa da juventude?
Oliveira– Não, não só. Tem gente na faixa dos 40 anos que picha porque isso já virou uma motivação da vida do cara.
Wainer – Mas são poucos. Na verdade, a maioria dos pichadores que estão em atividade é molecada, tem entre 15 e 22 anos, no máximo.
Diplomatique– E eles não têm outro espaço de lazer.
Wainer – Exatamente. É a adrenalina deles. Enquanto o playboy vai pegar onda em Maresias, os moleques sobem em um prédio no centro de São Paulo. É a mesma adrenalina de pegar uma onda grande. Todo mundo precisa disso. Não sei nem se é um direito, mas é uma necessidade.
Nota: O filme Pixo ainda não tem data para estrear nas telas de cinema. Em breve, algumas cenas extras e novos materiais sobre o tema serão disponibilizados no site www.pixo.com.br.
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