Disciplina - Sociologia

Sociologia

06/08/2013

Arte e política, a ação irmã do sonho

Por Evelyne Pieiller
Os políticos, nas nossas democracias esclarecidas, não falam mais da arte. No programa para a eleição presidencial que François Hollande e Nicolas Sarkozy apresentavam em 2012, a palavra “arte” estava ausente. Nada de novo: nos discursos das “elites”, “a cultura” substituiu “a arte”. No entanto, a cultura é uma noção vaga: ninguém sabe exatamente de que se trata, e tudo se confunde. Para os políticos no poder há algumas décadas, o objetivo nessa área continua sendo a “democratização” do acesso, que deve permitir uma aproximação das camadas sociais. Espantosa maneira de transformar a arte em simples fator de integração e de perverter um assunto que por muito tempo foi delicado.

Durante quase dois séculos, enquanto se afirmava a questão social, duas concepções do papel da arte se enfrentaram. Enaltecimento da alma ou instrumento a serviço da transformação da situação concreta dos homens? Obra para os esclarecidos ou arte para o povo? Interrogação importante, que não pode fazer desaparecer num passe de mágica a do “dever de cultura” e do “direito à cultura para cada um de nossos concidadãos”.1 Interrogação fundamental, que parece claramente se reativar hoje, enquanto se afirmam novamente conflitos políticos e sociais.

Kash, operário da Peugeot e rapper, escreveu “Isso não pode continuar”, que se tornou um clipe muito visto, no qual sua cólera e ironia se conjugam a uma reportagem sobre o fechamento da fábrica de Aulnay. Arya Aramnejad consagrou uma canção, “Deltangui” (“O coração apertado”), ao movimento verde iraniano, a onda de manifestações contra a fraude durante a eleição presidencial de 2009; ele está preso há dezoito meses. O coletivo D’ores já trabalhou no palco o sentido de 1793 com Notre Terreur [Nosso Terror]. No fim de maio, o artista e opositor chinês Ai Weiwei postou um clipe que evoca sua detenção em 2011. Nele se misturam rock, cinema e protestos contagiantes de encontro à “harmonia” tão cara à propaganda do poder.

“Mais forte do que a pólvora dos canhões”

São apenas alguns exemplos, heterogêneos, e que não desejamos comparar, mas que dão testemunho da importância crescente de uma arte que se reconhece em parte ligada à política. E não é sem interesse lembrar quais são as questões, pois a arte politizada foi por muito tempo suspeita de ser menos “criativa” do que a arte... desengajada. A que se engaja a arte quando o artista se engaja? A obra não se bastaria por si só?

Antes, é importante ressaltar que essas concepções divergentes sobre o papel da arte não existem desde sempre. Elas nasceram de uma história política e social, sob fundo de revolução. Essa tensão do artista entre o engajamento e a estética, entre a arte útil e a que reivindica sua autonomia, entre a obra ligada às questões de sua época e a busca de uma beleza atemporal, não floresceu antes do século XIX. Foi apenas nesse momento que se generalizou o uso de assinar um quadro, que então passou a ser considerado uma “obra”. A própria palavra “Arte”, com maiúscula e com seu significado moderno, não parece ter aparecido antes do século XVIII, que distingue as artes “mecânicas” das artes “nobres”, a poesia, a música, a pintura e... a arte militar. O artista foi assim pouco a pouco se diferenciando do artesão, numa hierarquia de valores que privilegia o fato de que “elas [a pintura e a poesia] não surgiram da necessidade” (discurso preliminar da Enciclopédia). O otiumcontra o negotium, o lazer, o luxo do inútil contra o trabalho e sua rentabilidade.

No século XIX, essas oposições aumentaram. De um lado, o Estado perdeu seu monopólio em matéria de exposição e consagração;2 do outro lado, a revolução, ao abolir os privilégios e ao colocar em destaque a noção, espantosa, de igualdade, fez surgir uma interrogação sobre a diferença íntima, a excepcionalidade. Ainda mais porque o século foi atormentado por outra (longa) revolução, esta industrial, que levantou também a questão do povo, da multidão, da massa, que se tornou visível. A revolução política fracassou, diversas vezes, mas suas interrogações, suas realizações, seus ideais continuaram a trabalhar os espíritos, enquanto a questão social veio reativá-los e aguçá-los.

Triunfo da burguesia e de seus valores, o trabalho, a economia, o respeito à ordem: o artista se submeteu à lei do mercado, ele devia agradar aos que formam o público e com quem ele não compartilha necessariamente os valores. Ele passou a ter, então, a escolha entre duas posições: reconhecer por juízes apenas as exigências de sua arte e reivindicar sua torre de marfim, de onde ele poderia desprezar os filisteus incapazes de se elevar até a Beleza, ou se considerar arauto daqueles que a classe dominante despreza e se colocar a serviço de valores libertadores. A arte pela arte ou a arte útil. A arte como fim em si mesma ou a arte para servir a um fim. “A arte se torna cada vez mais a propriedade de uma elite nesta época de democracia, a propriedade de uma aristocracia bizarra, mórbida e cheia de charme”, comentava o escritor Catulle Mendès no final do século.3 Situação sem saída para aqueles que não queriam ser porta-vozes da massa nem artistas para alguns raros eleitos. “A arte, no fim das contas, talvez não seja mais séria do que um jogo de boliche; talvez tudo seja apenas uma imensa piada”, avançava Gustave Flaubert em sua Correspondência. Para que serve tudo isso?

Alguns deram respostas concretas. Escritores, Victor Hugo em primeiro lugar, sobre quem o monarquista católico e ainda assim dândi Jules Barbey d’Aurevilly ressaltou que seu desenho, com Os miseráveis, conseguia “explodir todas as instituições sociais, com uma coisa mais forte do que a pólvora dos canhões que explodem montanhas – com lágrimas e com piedade”.4

Atiçar o desejo de outros horizontes

Os pensadores políticos intervieram no debate. Pierre-Joseph Proudhon lembrou que a excepcionalidade, a particularidade do artista, era “o produto da inteligência universal e de uma ciência geral acumulada por uma diversidade de mestres, por meio do auxílio de uma diversidade de indústrias inferiores” e ressaltava que ele era “chamado a competir pela criação do mundo social” ao representar uma realidade ideal “em vista do aperfeiçoamento físico, intelectual e moral da humanidade, de sua justificativa por si mesma e finalmente sua glorificação”.5 Esse “máximo da grosseria socialista”, como disse Flaubert em sua Correspondência, é o que vai se encontrar, modulado, nervoso, preciso, ao longo do século XX, quando se enfrentaram e confrontaram as vanguardas políticas e artísticas, principalmente à luz das grandes esperanças criadas pela revolução de 1917 e pelos pesadelos do século.

Duas reflexões essenciais permitiram superar o obstáculo da oposição entre arte pura e útil, pesquisa da beleza eterna e serviço a uma causa.

Bertolt Brecht, o arquétipo do artista engajado, um dos grandes teóricos e práticos de uma arte política, marxista, fundador do Berliner Ensemble na República Democrática Alemã (RDA), lembrava que, “desde sempre, o objetivo do teatro, como o de todas as artes, foi divertir os homens. [...] Sua única justificativa é o prazer que proporciona, mas esse prazer é indispensável. Não poderíamos atribuir-lhe um status mais elevado se o transformássemos, por exemplo, em uma espécie de feira da moral. [...] Não deveríamos pedir-lhe que ensinasse o que quer que fosse. Pois é importante que o teatro tenha toda a liberdade de permanecer supérfluo, o que implica, é verdade, que vivamos para o supérfluo”.6

O que ele enuncia aqui é que uma peça é política não quando tem um tema político, mas quando “adota uma atitude política: o prazer de transformar as coisas, tanto políticas quanto privadas”.7 É por seus poderes intrínsecos que a arte pode agir. Ainda é preciso “buscar os verdadeiros prazeres de nossa época”, o que implica inventar as formas adaptadas às questões contemporâneas. “Se lhe perguntam se você é comunista, mais vale apresentar como prova seus quadros do que seu cartão de filiação ao Partido.”8 Não há receita formal: existem apenas novas questões levantadas pela sociedade, às quais é preciso dar uma forma tal que desperte no espectador o prazer de refletir sobre respostas diferentes daquelas apresentadas pelo mundo onde ele vive. Uma forma brincalhona que leva ao espanto, desabitua das falsas evidências, provoca a dúvida a respeito da perenidade da ordem existente, ajuda a desejar se libertar do que impede o humano de viver mais amplamente. O que resulta em... prazer.

Essa saída do dilema arte de elite, solitário, e arte degradada em propaganda, Brecht não foi o único a formular. Os “românticos revolucionários”,9 os grandes inventores da Revolução de Outubro, assim como os surrealistas souberam procurar o “mito em relação com a sociedade que julgamos desejável”. Sem formalismo e também sem “coisa barata revolucionária, apenas rica de boas intenções”, como dizia Anatoli Lounatcharski, comissário de instrução na URSS de 1917 a 1929.10 O “realismo socialista” também era tão vazio quanto os exercícios estéticos.

Havia outra saída, complementar: transformar um artigo de luxo em bem universal − o que pretendiam fazer, por exemplo, os artistas que apoiavam a Frente Popular, em 1936. Eles escolheram ser assalariados para ensinar e popularizar sua arte: foi o começo programado da descentralização teatral. Franz Masereel, grande xilogravurista, dirigiu uma academia de pintura financiada pela União dos Sindicatos do Sena: “Não sou esteta o suficiente para me satisfazer sendo apenas um artista”. La Marseillaise, de Jean Renoir, é um “grande filme nacional, oficial e democrático, coberto por uma subscrição pública”, sobre o qual Louis Aragon escreveu no jornal Ce Soir (1º fev. 1938) que “o grande milagre foi ter feito, apesar dos figurinos, apesar do cenário, apesar do tema de La Marseillaise, um filme tão atual, tão instigante, tão humano, que nos toma, nos leva, como se fosse nossa própria vida que se debatesse diante de nossos olhos. E, de fato, é a nossa própria vida”.

O que acontece nesses exemplos é a recusa de recorrer, em nome de um ideal de esquerda, à simplificação dos meios de expressão e paralelamente a escolha de formar aptidões ao julgamento estético. A ambição maior é então contribuir para a chegada de uma “sociedade emancipada”, em que “cada um poderá se satisfazer livremente, entre outras atividades, com a criação. Não haverá pintores, mas pessoas que, entre outras coisas, pintam”.11 Foram os teóricos políticos que disseram: Karl Marx e Friedrich Engels. Um poeta lhes fez eco, Lautréamont, afirmando que “a poesia deve ser feita para todos, e não para um” (Poesias II). Artistas seguiram esse caminho, principalmente nos anos 1960-1970, tentando acabar com a sacralização do autor em proveito do coletivo, fazendo o espectador intervir como ator e encontrando novos meios de produção e de difusão alternativos.

Em outras palavras, o que traduz a arte que se diz política é que o homem está inacabado; há muito a transformar para atingir as condições de um florescimento de suas capacidades; e, quando ele cumpre seu papel, é o de um sabotador das representações dominantes e de um provocador do desejo de outros horizontes. Então, ele aprende a “cobiçar o impossível: o que o poder das sociedades estabelecidas proíbe desejar para impedir de nascer e que deve ser conquistado”.12

Ele não pode mudar o mundo, mas cria a emoção de sentir que há jogo na ordem estabelecida, nas cabeças, nas aspirações − o que não poderia ser reduzido a estampar bons sentimentos progressistas nem à pequena busca pela provocação, que frequentemente se contenta em chocar o burguês, contente de ser burguês...

Mas essa arte não poderia também se dissolver na animação cultural nem ser esquecida pela educação artística, pois ela com certeza não busca “reencantar o mundo”: ela faz da crise de nossas realidades uma “festa das possibilidades”13 – nossas possibilidades coletivas e íntimas.

1 Discurso da Ministra da Cultura, Aurélie Filippetti, Rencontres d’Avignon, 15 jul. 2012.
2 Cf. Nathalie Heinich, Du peintre à l’artiste [Do pintor ao artista], Minuit, Paris, 1993.
3 Citado por Jules Huret, Enquête sur l’évolution littéraire [Pesquisa sobre a evolução literária], Bibliothèque Charpentier, Paris, 1891.
4 Cf. Les Misérables, un roman inconnu? [Os Miseráveis, um romance desconhecido?], Maison de Victor Hugo – Paris Musées, 2008.
5 P ierre-Joseph Proudhon, “Du principe de l’art et de sa destination sociale (extraits)” [Do princípio da arte e de sua destinação social (trechos)]. In: Émile Zola e Pierre-Joseph Proudhon, Controverse sur Courbet et l’utilité sociale de l’art [Controvérsia sobre Courbet e a utilidade social da arte], Mille et Une Nuits, Paris, 2011.
6 B ertolt Brecht, Petit Organon pour le théâtre [Pequeno Organon para o teatro], L’Arche, Paris, 1970.
7 Manfred Wekwerth, em “Bertolt Brecht”, Europe, n.856-857, Paris, ago./set. 2000.
8 B ertolt Brecht, “Appel aux jeunes peintres” [Chamado aos jovens pintores], Écrits sur la littérature et l’art [Escritos sobre a literatura e a arte], L’Arche, Paris, 1970.
9 Michael Löwy e Robert Sayre, Révolte et mélancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité [Revolta e melancolia. O romantismo na contracorrente da modernidade], Payot, Paris, 1992.
10 A natoli Lounatcharski, Théâtre et revolution [Teatro e revolução], Maspéro, Paris, 1971.
11 Karl Marx e Friedrich Engels, L’idéologie allemande [A ideologia alemã] (1846), Éditions Sociales, Paris, 1976.
12 Henri Maler, Convoiter l’impossible [Cobiçar o impossível], Albin Michel, Paris, 1995.
13 Ersnt Bloch, Le principe espérance [O princípio esperança], três volumes, Gallimard, Paris, 1976, 1982 e 1991.

Esta reportagem foi publicada no dia 02 de julho de 2013 no site http://www.diplomatique.org.br/. Todas as informações são de responsabilidade do autor.
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