Sociologia
03/01/2014
Zapatismo, vinte anos depois
Por Piero Locatelli / Carta CapitalEm 1º de janeiro de 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) tomou o controle de parte da pobre província mexicana de Chiapas. Formado em sua maior parte por indígenas, o EZLN ocupou cidades, libertou presos e desafiou o poder do Estado na região. Depois de longas disputas com o governo do México, o grupo abaixou as armas e adotou estratégias de resistência civil. Hoje, controla parte de Chiapas.
Quase vinte anos depois do levante, a influência do movimento zapatista ainda pode ser sentida. Não apenas no México. Características do zapatismo puderam ser vistas nas manifestações que tomaram o Brasil em junho de 2013. Estopim dos protestos, o Movimento Passe Livre (MPL) compartilha ideias vindas de Chiapas. O MPL é herdeiro da luta antiglobalização do final dos anos 1990. Naquele momento, o EZLN teve sua maior influência dentro da esquerda política, quando movimentos ao redor do mundo, organizados na Ação Global dos Povos, questionavam as políticas neoliberais em evidência na época.
“O zapatismo conseguiu soprar novos ares sobre os cânones da esquerda tradicional, inspirando-nos a ir além dos caminhos mais defendidos e usuais”, diz um integrante do MPL que preferiu não se identificar. Ele se encontrava em Chiapas, junto a outros militantes do movimento que participavam da Escuelita Zapatista, um encontro de ativistas na região.
Uma das características comuns ao EZLN e ao MPL é a negação de figuras destacadas, em contraposição aos líderes da esquerda organizada em partidos e sindicatos. Alguns porta-vozes em Chiapas atendem pelo nome de “subcomandante”, sendo Marcos o mais conhecido deles. A partir da ideia de que ninguém se destaca, surge a imagem mais familiar dos zapatistas: a dos rostos cobertos por capuzes pretos. A imagem dos “encapuchados”, junto com a estrela vermelha em um fundo preto, se tornaram os ícones mais conhecidos do movimento.
Os integrantes do MPL não chegam a se “encapuchar” da mesma forma que os zapatistas, mas se queixaram do tratamento recebido por parte da imprensa, que caracterizava alguns deles como líderes do movimento, ou divulgavam características e interesses pessoais de militantes. Para eles, a personalização feita pela imprensa é uma “contra-ofensiva”, que procura desvincula-los de uma causa maior. “Costumamos dizer que a horizontalidade é um horizonte, um ideal que devemos perseguir ativamente. A cada vez que relaxamos, facilmente terminamos por reproduzir essas práticas [hierarquizadas]. Por isso, a horizontalidade é algo ativo. É um combate constante contra a hierarquiazação a que nos empurram a todo momento,” diz um militante do MPL.
Territórios autônomos
Quem chega perto das terras em Chiapas encontra placas com a inscrição: “Esta usted en territorio zapatista em rebeldia, aqui manda el pueblo y el governo obedece.” Lá dentro, os zapatistas mantêm a educação, o judiciário, e tudo o que for possível em seu próprio controle. Os zapatistas não tentam tomar o controle do Estado mexicano e não disputam eleições, tentando manter o poder onde se encontram.
Alguns movimentos urbanos de moradia em São Paulo atuam de forma parecida e buscam ter autonomia em suas áreas. A Rede Extremo Sul diz compartilhar de algumas das características da luta em Chiapas. “Temos referência na ousadia zapatista, na sua postura antidogmática, e sobretudo na percepção de que não basta trocar patrões e governantes, maquiar os regimes políticos", diz o movimento Rede Extremo Sul, em resposta coletiva enviada à reportagem. "Mas [devemos] colocar como tarefa a construção de novas relações sociais, a tomada de controle de maneira ativa, consciente e coletiva das diversas dimensões da vida social.”
Nas ocupações de terrenos feitas pelo movimento, no bairro do Grajaú, os moradores têm diversas funções dentro da ocupação. A intenção é que eles possam participar ao máximo em atividades ligadas à educação, comunicação, cultura e à resolução de conflitos, por exemplo. Nas assembleias, todos têm vez para falar e existe um esforço para que as decisões relevantes sejam tomadas em conjunto. “A experiência da vida coletiva nas ocupações representa certa ruptura com o individualismo da vida cotidiana, de modo que elas se apresentam como espaços propícios a este exercício de autonomia e de mudança de cultura política,” explica a Rede.
Zapatistas mostraram que a história não tinha acabado
O levante dos zapatistas aconteceu poucos anos após o fim da União Soviética e a queda do muro de Berlim, em meio à uma globalização sem precedentes do capital financeiro. Na avaliação de Gilmar Mauro, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), estes eventos causaram uma crise nas organizações socialistas do mundo todo. Para o militante, o levante zapatista foi um “contraponto fundamental” a esse quadro: Chiapas mostrava ao mundo que a democracia liberal não era o fim da história, como havia escrito o historiador norte-americano Francis Fukuyama em 1992.
Anterior ao levante zapatista, o MST é uma organização assumidamente hierarquizada. Nela, há direções em diferentes esferas (nacional, estadual e local). Embora não haja a figura de um presidente, há integrantes que se destacam pela sua participação e direção do movimento. Apesar de não ter candidatos próprios, o MST se posiciona e também disputa a política dentro dos meandros do Estado. Faz isso, por exemplo, apoiando determinados candidatos e dialogando mais com o poder público do que os movimentos autonomistas (como o MPL) o fazem.
Mesmo com as diferenças entre os movimentos, Mauro diz que o EZLN e o MST mantêm uma relação de respeito mútuo e solidariedade. “O zapatismo cumpriu um papel de influência na juventude de todo planeta com o discurso que se diferencia da visão clássica da tomada do poder na esquerda. Ou seja, eles mostram a ideia de poder popular,” diz Mauro, que já esteve em Chiapas algumas vezes. “A construção de poder popular é muito importante, ou seja, a ideia de construir novas formas, uma nova metodologia para alterar a ordem do capital e construir outra sociedade. A participação de todos e de todas é muito importante.”
Para Mauro, este outro tipo de organização surge porque sindicatos e partidos foram construídos quando o desenvolvimento do capitalismo permitia ganhos para todos, ao contrário do que acontece hoje, quando os trabalhadores são mais prejudicados. “É preciso construir novas formas organizativas. Mas isso não significa colocar na lata do lixo o que a gente construiu [em sindicatos, partidos, e movimentos sociais], pois estas novas formas não dão conta de organizar o conjunto da classe trabalhadora.” Qual seria essa nova forma? “É a experimentação concreta que vai permitir testar e construir novas formas de luta.”
Esta reportagem foi publicada no dia 02 de janeiro de 2014 no site http://www.cartacapital.com.br/. Todas as informações são de responsabilidade do autor.