Sociologia
25/02/2014
De Masi: "Brasil, país dos sociólogos"
Num novo livro, o pensador italiano afirma que a humanidade precisa criar um novo modelo de vida que ofereça mais bem-estar – e que o Brasil pode inspirá-lo.
Por Marcos Coronato/Época
Os brasileiros, de um tempo para cá, passaram a ver sociologia em tudo – até no rolezinho dos adolescentes. Talvez seja uma característica do país. “Enquanto na França prevaleceram os filósofos, na Inglaterra os economistas, na Espanha os escritores, na Alemanha os músicos, no Brasil prevaleceram os sociólogos e os antropológos”, diz o italiano Domenico De Masi, de 75 anos. “Tanto que vocês elegeram um sociólogo para presidente.” De Masi, que também é sociólogo, é um profundo conhecedor do Brasil. Mergulhou nas obras de autores fundamentais para a compreensão do país, como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Sérgio Buarque de Holanda. A admiração pelo Brasil está presente em seu novo livro, O futuro chegou – Modelos de vida para uma sociedade desorientada (Casa da Palavra, 768 páginas, R$ 68).
ÉPOCA – Entre os autores brasileiros que o senhor leu, qual deles mais o impressionou?
Domenico De Masi – O Brasil tem a sorte de ter tido no passado e ter no presente intelectuais de alto nível, que projetaram a identidade e enalteceram os valores brasileiros, ganhando respeito em todo o mundo. Enquanto na França prevaleceram os filósofos, na Inglaterra os economistas, na Espanha os escritores, na Alemanha os músicos, no Brasil prevaleceram os sociólogos e os antropólogos. O Brasil é o único país do mundo que teve um grande sociólogo na Presidência da República – e por duas vezes. Por isso, e por seu imenso patrimônio cultural, espero que sejam os intelectuais brasileiros a guiar a elaboração de um modelo de desenvolvimento mundial necessário para vencer a desorientação de nossa sociedade e dar uma dimensão unificada e global para as diversas regiões da Terra. Li e me apaixonei pelo pensamento de muitos intelectuais brasileiros, mas dois deles me enriqueceram de modo particular: Darcy Ribeiro, que não tive tempo de conhecer, mas de quem li toda a imensa obra; e Oscar Niemeyer, com quem tive uma profunda amizade. Ambos deram uma contribuição criativa inestimável para impor ao mundo a excelência original do modelo brasileiro.
ÉPOCA – O senhor afirma que o Brasil é rico materialmente e rico de esperança, por isso tem algo a ensinar ao mundo. E as sociedades que eliminaram a miséria, como o Japão, o Canadá e os países escandinavos? Não seriam eles os melhores exemplos?
De Masi – Japão, Canadá e os países escandinavos têm muito a ensinar nos aspectos econômicos e sociais para ajudar na construção do novo modelo que o mundo precisa. Mas não se vive só de pão e bem-estar não é sinônimo de consumo. A felicidade de um povo e a excelência de seu modelo de vida não dependem apenas da riqueza. Os japoneses têm um PIB per capita de US$ 46 mil, mas se suicidam com tamanha frequência que, em 2007, o governo japonês sentiu a necessidade de publicar um Livro Branco antissuicídio. O Butão tem um PIB per capita de apenas US$ 2.400. Mas adota o índice de Felicidade Interna Bruta (FIB), que contempla a qualidade do ar, a saúde dos cidadãos, o ecossistema, a educação, o desenvolvimento de comunidades locais e a riqueza das relações sociais. Com base no PIB, esse pequeno Estado é um dos mais pobres da Ásia. Se levarmos em conta o FIB, passa ao primeiro lugar no continente e oitavo no mundo.
ÉPOCA – Em que o Brasil pode contribuir?
De Masi – O Brasil tem um PIB que o coloca na sexta posição no mundo (segundo dados de 2012 do Banco Mundial, o Brasil tem o sétimo PIB mundial), e, com seus US$ 12,6 mil de PIB per capita, pode se orgulhar de ter preciosos recursos econômicos, cada vez mais escassos no resto do mundo e cada vez menos desprezíveis na construção do novo modo de vida. Penso na copiosa mistura de raças aliada ao baixo índice de racismo, no sincretismo cultural, no amor pelo corpo, na sensualidade, na cordialidade, na musicalidade, na propensão do brasileiro a assimilar as contribuições dos estrangeiros, na hospitalidade, na alegria, na espontaneidade, na abertura ao novo e ao diferente, na tendência a encarar a realidade com um pensamento positivo, na capacidade de considerar fluidas as fronteiras entre o sagrado e o profano, o formal e o informal, o público e o privado, o emocional e o racional. A todos esses elementos positivos já presentes, hoje devemos acrescentar dois: o aumento da consciência dos grandes desafios a ser enfrentados e superados dentro do país – corrupção, violência, desigualdade, deficits educacionais –, e a percepção, agora clara, de ser um país de ponta, diferente e positivo, capaz de propor, mesmo no exterior, com orgulho, sua própria maneira de ser.
ÉPOCA – Qual foi seu objetivo ao identificar 15 modelos de sociedade? Os modelos certamente nos ajudam a entender o passado. Compreendê-los ajuda a melhorar o futuro?
De Masi – Cada socidade formou a base de um modelo existente. A Idade Média cristã foi estruturada na pregação de Cristo e na doutrina elaborada pelos padres da Igreja do Oriente e do Ocidente. A sociedade muçulmana nasceu e se desenvolveu seguindo o padrão ditado por Maomé e pelos califas que lhe sucederam. A sociedade dos Estados Unidos se fundou com base num modelo que gradualmente influenciaria todo o Ocidente e que se inspirou em ideias protestantes, iluministas e puritanas. O modelo liberal que triunfou no século XIX e que ainda afeta nossa economia e nossa política é derivado do pensamento de John Locke, Adam Smith, Alexis de Tocqueville e outros. A sociedade soviética tentou a construção do modelo concebido por Marx, Engels e Lenin. Nenhum modelo de vida passado ou presente é capaz de tornar felizes os homens que os adotaram. Mas temos o dever de abordar a plenitude da vida, melhorando os modelos que não nos satisfazem. Não estou convencido que o bem-estar econômico seja uma meta coletiva que deva ser encampada pelo Estado, enquanto a felicidade deva ser uma meta pessoal que cabe apenas ao indivíduo atingir. Creio, no entanto, que o indivíduo não possa se aproximar da felicidade plena se o contexto social em que ele vive é violento, injusto, anárquico, desnorteado, negativo, predatório. Assim, cabe ao Estado garantir as condições essenciais para todo cidadão cultivar a própria felicidade.
ÉPOCA – Entre os modelos em que o senhor dividiu a humanidade, alguns produzem muito mais pobreza. Outros produzem muito mais abundância. Isso já não indica uma clara superioridade de alguns modelos em relação a outros?
De Masi – Os modelos japonês e protestante produziram mais riqueza, mas os modelos clássico e católico produziram mais humanismo. O modelo dos Estados Unidos produziu mais guerras que o do Brasil, que por sua vez é mais dinâmico e positivo que o modelo de italianos e franceses. Os modelos politeístas são menos intransigentes que os monoteístas. Todos os 15 modelos analisados apresentam qualidades e defeitos. Nenhum sozinho basta para orientar o homem pós-industrial, portador de necessidades inéditas em relação àquelas das gerações que o precederam.
ÉPOCA – O senhor sugere que a humanidade deveria abraçar um novo modelo. Mas não seria mais simples copiar ou melhorar o que já existe?
De Masi – É necessário estabelecer o modelo capaz de assegurar a maior felicidade possível para a sociedade pós-industrial. Sem esse modelo, não sabemos qual meta buscar nem como aproveitar os recursos que nos permitam chegar lá. Uma vez elaborado o modelo ideal de futuro, caberá a cada comunidade melhorar o modelo defeituoso que adota atualmente, a fim de aproximá-lo do ideal. Cada modelo atual ou do passado, sendo o resultado de um longo projeto, uma longa reflexão e testes, tem algo bom que deve ser incorporado ao novo modelo. Até agora, um “poder forte”, como Roma, a Inglaterra ou os Estados Unidos, elaborava um modelo e todos os países colonizados eram obrigados a adotá-lo. Hoje, temos as condições tecnológicas e sociais que permitem a concepção do novo modelo, assim como ocorre com as informações nas redes sociais e na Wikipédia.
ÉPOCA – O senhor diz que o novo modelo incorporará valores dos antigos índios brasileiros. Como é essa ideia?
De Masi – Na metade do século XIX, a cidade mais industrializada do mundo era Manchester (na Inglaterra), onde apenas 6% dos trabalhadores estavam empregados. Nas atuais fábricas pós-industriais, um terço dos trabalhadores desenvolve atividades criativas. Os outros dois terços estão engajados em atividades executivas do tipo física ou intelectual, destinadas a ser absorvidas por computadores e robôs. Num futuro bem próximo, como previu (o economista britânico John Maynard) Keynes no fim dos anos 1930, só haverá trabalho criativo, enquanto a maioria dos trabalhadores não terá de trabalhar mais que 15 horas por semana. Em grande parte do mundo, a relação entre tempo e vida será muito similar àquela dos índios, centrada em atividades rituais e estéticas. Quando o novo modo de vida for desenhado e incorporar também esses valores, os brasileiros ficarão orgulhosos dos ancestrais indígenas de que hoje se envergonham. E nada impedirá nossos netos de somar os benefícios do ócio criativo, do senso estético e da sabedoria indígena aos benefícios da ciência e da tecnologia pós-industrial.
Esta noticia foi publicada no site http://epoca.globo.com em 31 de Janeiro de 2014. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade do autor.