Sociologia
19/11/2007
Brasil - Canudear é Querer Bem. 110 anos de Canudos Vive!
Nancy Cardoso Pereira*
Querem cercar o sertãoQuerem vender o país
Querem botar num curral
O povo simples como animal.
Nós deixa
Nós não deixa não
Seja o que Deus quiser
Canudos quem vai mandar
Venha donde vier
O vento forte
É quem dirá
A gente quer o melhor
Tem sonhos que vão no além
O jeito é ficar feliz
Canudear é querer bem.
(Padre Enoque -www.infonet.com.br/canudos/poesias.htm)
Canudos tem como cenário a Grande Seca de 1877. Era luta pela terra e pela água - responde afogado o riacho de Vaza-Barris nas terras conselheristas: perto e longe do Rio São Francisco. Tudo um mesmo lugar: o mesmo sertão. Veredas.
Este o rio de Canudos: Vaza-Barris. Dele disse Euclides da Cunha que desde Jeremoabo (BA), mais ou menos o meio de seu curso, até as cabeceiras, constituía "uma fantasia de cartógrafos; o rabisco de um rio problemático"...; uma inquebrantável versatilidade de rio sertanejo em luta permanente contra a morte (http://jeremoabo.tripod.com).
Canudos era terra e água do jeito que o sertão há de ser: um ajuntamento de camponeses feitos de índios, negros e sertanejos - mulheres e crianças até. Era o reino do cuscuz e leite, do criatório de bode, da feira mais movimentada da região, do povo assentado. Terra e água: Vaza - Barris.
Quando a repressão veio, veio tremendo do mesmo medo que sentiu da revolta dos quilombos e das resistências dos kariris. Veio como o Exército novo da República velha e nunca se destruiu tanto um lugar como daquela vez em Canudos: os mortos mais de 25 mil. Foram necessárias mais de três expedições militares, a última com quase 5 mil homens e artilharia.
Era um novembro de 1897.
Nos anos 50, Getúlio Vargas ordenou construir o Açude do Cocorobó. Em 1969, a barragem cobriu o Vaza-Barris em vinte quilômetros inundando as ruínas da cidade conselheirista
(http://www.infonet.com.br/canudos/publicafetagsecas.htm).
"Maravilha de projeto" - disse a imprensa. "A resposta da tecnologia" - bradaram os tecnocratas. "O naufrágio dos rebeldes" - pensou o ditador.
Em março de 1968, quando ficou pronto o açude que afogou o Vaza-Barris, os técnicos (burocratas dados a saber tudo desde que seja exatamente o que o poder precisa) previram que o rio levaria 10 anos para encher uma área de 16 quilômetros de extensão por 5 quilômetros de largura.
Esqueceram de combinar com o resto do sertão!! No início de abril de 1968, uma tromba-d’água arrasadora trouxe dos confins da Serra dos Macacos a força do velho Vaza-Barris. E o Cocorobó encheu em apenas três dias de fulminante inundação.
O Rio vaza onde quer! Há muitos anos o Vaza-Barris não deita suas águas na represa.
Hoje o Cocorobó está 12 metros abaixo do seu nível normal. Ao longo das décadas o açude foi sendo engolido pela secura do rio e hoje deixa ver o que de Canudos era e foi. Surgem fragmentos do antigo arraial e da igreja nova erguida por Conselheiro.
São 110 anos de parceria entre o exército, a mídia, os governos, os técnicos e as elites contra as alternativas políticas e de vida do povo camponês, povo do sertão.
A insurreição popular de Canudos liderada por Antônio Conselheiro completa 110 anos.
Que disseram de Canudos os jornalistas da época?
Quem era aquela gente que no sertão da Bahia seguia um beato e se organizava no Belo Monte?
Estão a serviço do monarquistas - dizem os jornais republicanos como a Gazeta de Notícias, O País e os Estado de São Paulo.
São bandidos e nada mais... publica a Folha da Tarde, enquanto o jornal Comércio de São Paulo publica declarações de Rui Barbosa que afirma "Canudos é apenas um acidente monstruoso das aluviões morais do sertão, truculência das lutas primitivas, a crendice da descultura analfabeta, a escória promíscua do campo e da cidade".
Outros vão dizer que o povo de Canudos era apenas um bando de incultos fanáticos "Antonio Conselheito é mais um fanático ignorante que só faz pregar uma moral incompleta, ensianr rezas, fazer prédicas banais, rezar terços e ladainhas com o povo..."
Alguns mais liberais, chegados às explicações científicas vão publicar editoriais e matérias afirmando que a populacão sertaneja se encontra num estágio inferior de evolução social, têm um espírito infantil e inculto atormentada por uma aspiração religiosa não satisfeita publicam crônicas que afirmam que o povo pobre de Canudos é fruto do mestiço, mulato, mameluco ou cafuzo...é um decaído, sem a energia física dos selvagens e sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores.
110 anos de Canudos.
110 anos de um des-serviço dos meios jornalísticos.
110 anos em que os jornais disseram o que quiseram sobre o povo de Monte Belo sem conhecer a luta daquela gente..., mas a serviço de monarquistas e republicanos, jacobinos e positivistas, liberais e modernos.
A notícia cobriu o fato, escondeu a cara magra e sertaneja de homens, mulheres e crianças, inviabilizou a interlocução do povo pobre de Canudos com os demais processos da sociedade brasileira que clamavam por justiça.
Hoje, tentam massacrar com palavras e laudos a luta do povo do São Francisco... mil Montes Belos ressuscitados, mil quilombos reinventados, mil aldeias de ressurgentes! E o rio se afasta e mostra o que tem nas entranhas e denuncia o cálculo e a engenharia de quem não conhece nem ama o lugar. De quem traça a técnica guiado pelo lucro a geografia diz "mente a engenharia"!
De equívoco em equívoco as elites se perdem no sertão e o povo diz: "ladrão!" com toda garantia. E os lambe-lambe retratistas, copiadores das bulas dos jornais afundam suas matérias na lama ressuscitada do Vaza-Barris.
Assim a luta soberana e gloriosa dos beraderos das beraderas: povo da beira do Rio. Vaza-Barril. São Francisco. Canudos outra vez. Canudear é querer bem.
"Aquela campanha (Canudos) lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo". Assim, Euclides da Cunha escreve no prefácio de seu livro em 1902.
Hoje dizemos o mesmo da Transposição criminosa do São Francisco movida a exército, corrupção e engenharia de aluguel. Um crime! Denunciemos.
São Francisco Vivo: terra água rio e povo
* Pastora metodista. Coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra
Fonte: Adital, 14 de novembro de 2007