Sociologia
15/01/2008
“Uma análise sócio-antropológica do deslocamento compulsório provocado pela construção de barragens”
“Os efeitos sociais vão além do impacto físico das águas, pois implica na mudança de hábitos e da relação que os habitantes haviam estabelecido com o curso d'água transformado em lago”
Leia o texto, enviado ao “JC e-mail” por Gutemberg Armando Diniz Guerra, professor da UFPA, sobre a tese “Lamento e dor. Uma análise sócio antropológica do deslocamento compulsório provocado pela construção de barragens”, de Sonia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos:
Sonia Magalhães é pesquisadora reconhecida pelas inúmeras contribuições produzidas enquanto profissional ligada ao Museu Paraense Emilio Goeldi e engajamento em atividades universitárias, muitas delas com a Universidade Federal do Pará, aonde vem implantando um curso de mestrado profissional sobre Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente.
A tese resenhada é a leitura da dor como um sentimento coletivo, manifestado em indivíduos de grupos sociais atingidos por intervenções provocando perdas nos seus espaços de trabalho, moradia, lazer, religiosidade, memória.
No caso analisado, cujo cenário é a área de influência da barragem da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, a dor tem números, precisos ou imprecisos, sempre manipulados a favor dos agentes da intervenção, com proeminência da Eletronorte.
Os camponeses aparecem como atores representados pelas suas próprias falas ou por documentos de suas organizações como os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, Movimento dos Atingidos pelas Barragens, Comissões de negociação, ou por organismos de apoio e solidariedade como as igrejas católica (Comissão Pastoral da Terra) e luterana, enfrentando o estado e grandes empresas, estes últimos apoiados pelas organizações internacionais como o Banco Mundial.
Trata da dupla interpretação dos fatos, por um lado pela Eletronorte que, ao indenizar e expulsar os camponeses atribui ao procedimento administrativo o caráter de ajuda, auxilio, beneficio e ao público concernido os termos relocado, reassentado, como se a situação de desconforto provocada pelo deslocamento compulsório tivesse sido resolvida.
Por outro lado, os camponeses se manifestam identificando-se como expulsos, expropriados, atingidos, afogados, com a situação reduzida a condições precárias.
Sônia Magalhães busca aporte em leituras produzidas no plano acadêmico que lhe permitem enquadrar esta população na categoria de eco-refugiados em função de alterações provocadas no meio ambiente pela ação do homem.
Os efeitos perversos deste processo são fartamente relatados ao longo de todo o texto, com realce para as páginas 63 e 64.
A tese tem uma estrutura objetiva, tratando com profundidade o deslocamento compulsório em três dimensões: como problema público, como problema teórico e como problema vivenciado e manifestado como lamento e dor.
A imersão em cada um destas perspectivas é um capítulo, o que dá a consistência e a clareza das boas sínteses ao documento que, no entanto, é volumoso pela riqueza de detalhes, pelas fontes que mobiliza, sejam eles documentos, sejam eles registros feitos ao longo de mais de vinte anos de vivencia na área escolhida como lócus da pesquisa, traduzidos em documentos e publicações seqüenciadas e disponíveis como referencia bibliográfica.
São 19 trabalhos de sua própria autoria, sendo 16 deles produzidos antes mesmo de ter se engajado no Programa de pós-graduação em Ciências Sociais em que produz a tese.
A documentação e bibliografia remetem a longas citações em português, francês e inglês, o que, se enriquece o texto pela preservação e chamada dos originais, exige do leitor versatilidade no domínio de idiomas.
Prima pela leitura crítica de um processo de expropriação caracterizado por perdas materiais de plantações, criações, casas, poços, praças, ruas, cemitérios, pelas trocas injustas (indenizações a valores econômicos aviltados, lotes menores do que os originais) e perdas imateriais (base física da memória, símbolos, relações afetivas com os lugares e pessoas, direitos violados, desdém e demora no processo de negociação e indenização), ocorridos em situação de stress e violência (iminência da inundação, aplicação de agrotóxicos, destruição de casas e plantações a revelia dos moradores e lavradores).
O texto inspira possibilidades de leitura que vão além dos marcos referenciais existentes para os processos de negociação vigentes, sugerindo que a área atingida é maior do que a inundada, ou banhada pelas águas.
Os efeitos sociais vão além do impacto físico das águas, pois implica na mudança de hábitos e da relação que os habitantes haviam estabelecido com o curso d'água transformado em lago.
As alterações nos comportamentos da fauna e flora implicam em mudanças de comportamento do pescador e dos lavradores na busca de sua manutenção e reprodução material. A população ictiológica se altera a jusante e a montante da barragem. O regime das águas obriga a novas práticas de manejo dos plantios e das criações.
O tempo exige novos registros e o espaço novos caminhos e formas de nele estar. Sem o devido preparo e com as reduções feitas pelas propostas e práticas de intervenção, a dor se mantém antes, durante e depois da expulsão dos camponeses do espaço onde se haviam estabelecido de maneira afetiva.
O texto, depois de lido, continua incomodando e instigando reflexões sobre os efeitos de grandes projetos sobre populações tratadas como números frios e amorfos.
É uma contribuição ao processo de construção de um desenvolvimento que leve em conta pessoas e grupos sociais com um componente inerente ao ser humano: o sentimento.
A tese é de que embora sejam feitos registros do sofrimento nos processos de deslocamento compulsório, não lhe é dado tratamento teórico e analítico no campo acadêmico.
Cobra, portanto, dos acadêmicos, investimento na compreensão do sofrimento humano como uma dimensão a ser explorada e tratada, recuperando a mais nobre função da produção acadêmica, qual seja a de estar a serviço do ser humano.
Mais informações:
SANTOS, Sonia Maria Simões Barbosa Magalhães. Lamento e dor. Uma análise sócio antropológica do deslocamento compulsório provocado pela construção de barragens. Belém/Villetaneuse: PPGCS/UFPA e CERAL/Université Paris Nord, 2007. Tese de doutorado em co-tutela sob orientação de Jean Hebette e Pierre Teisserenc.
Fonte: Jornal de Ciência e-mail 3429, de 14 de Janeiro de 2008.
Leia o texto, enviado ao “JC e-mail” por Gutemberg Armando Diniz Guerra, professor da UFPA, sobre a tese “Lamento e dor. Uma análise sócio antropológica do deslocamento compulsório provocado pela construção de barragens”, de Sonia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos:
Sonia Magalhães é pesquisadora reconhecida pelas inúmeras contribuições produzidas enquanto profissional ligada ao Museu Paraense Emilio Goeldi e engajamento em atividades universitárias, muitas delas com a Universidade Federal do Pará, aonde vem implantando um curso de mestrado profissional sobre Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente.
A tese resenhada é a leitura da dor como um sentimento coletivo, manifestado em indivíduos de grupos sociais atingidos por intervenções provocando perdas nos seus espaços de trabalho, moradia, lazer, religiosidade, memória.
No caso analisado, cujo cenário é a área de influência da barragem da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, a dor tem números, precisos ou imprecisos, sempre manipulados a favor dos agentes da intervenção, com proeminência da Eletronorte.
Os camponeses aparecem como atores representados pelas suas próprias falas ou por documentos de suas organizações como os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, Movimento dos Atingidos pelas Barragens, Comissões de negociação, ou por organismos de apoio e solidariedade como as igrejas católica (Comissão Pastoral da Terra) e luterana, enfrentando o estado e grandes empresas, estes últimos apoiados pelas organizações internacionais como o Banco Mundial.
Trata da dupla interpretação dos fatos, por um lado pela Eletronorte que, ao indenizar e expulsar os camponeses atribui ao procedimento administrativo o caráter de ajuda, auxilio, beneficio e ao público concernido os termos relocado, reassentado, como se a situação de desconforto provocada pelo deslocamento compulsório tivesse sido resolvida.
Por outro lado, os camponeses se manifestam identificando-se como expulsos, expropriados, atingidos, afogados, com a situação reduzida a condições precárias.
Sônia Magalhães busca aporte em leituras produzidas no plano acadêmico que lhe permitem enquadrar esta população na categoria de eco-refugiados em função de alterações provocadas no meio ambiente pela ação do homem.
Os efeitos perversos deste processo são fartamente relatados ao longo de todo o texto, com realce para as páginas 63 e 64.
A tese tem uma estrutura objetiva, tratando com profundidade o deslocamento compulsório em três dimensões: como problema público, como problema teórico e como problema vivenciado e manifestado como lamento e dor.
A imersão em cada um destas perspectivas é um capítulo, o que dá a consistência e a clareza das boas sínteses ao documento que, no entanto, é volumoso pela riqueza de detalhes, pelas fontes que mobiliza, sejam eles documentos, sejam eles registros feitos ao longo de mais de vinte anos de vivencia na área escolhida como lócus da pesquisa, traduzidos em documentos e publicações seqüenciadas e disponíveis como referencia bibliográfica.
São 19 trabalhos de sua própria autoria, sendo 16 deles produzidos antes mesmo de ter se engajado no Programa de pós-graduação em Ciências Sociais em que produz a tese.
A documentação e bibliografia remetem a longas citações em português, francês e inglês, o que, se enriquece o texto pela preservação e chamada dos originais, exige do leitor versatilidade no domínio de idiomas.
Prima pela leitura crítica de um processo de expropriação caracterizado por perdas materiais de plantações, criações, casas, poços, praças, ruas, cemitérios, pelas trocas injustas (indenizações a valores econômicos aviltados, lotes menores do que os originais) e perdas imateriais (base física da memória, símbolos, relações afetivas com os lugares e pessoas, direitos violados, desdém e demora no processo de negociação e indenização), ocorridos em situação de stress e violência (iminência da inundação, aplicação de agrotóxicos, destruição de casas e plantações a revelia dos moradores e lavradores).
O texto inspira possibilidades de leitura que vão além dos marcos referenciais existentes para os processos de negociação vigentes, sugerindo que a área atingida é maior do que a inundada, ou banhada pelas águas.
Os efeitos sociais vão além do impacto físico das águas, pois implica na mudança de hábitos e da relação que os habitantes haviam estabelecido com o curso d'água transformado em lago.
As alterações nos comportamentos da fauna e flora implicam em mudanças de comportamento do pescador e dos lavradores na busca de sua manutenção e reprodução material. A população ictiológica se altera a jusante e a montante da barragem. O regime das águas obriga a novas práticas de manejo dos plantios e das criações.
O tempo exige novos registros e o espaço novos caminhos e formas de nele estar. Sem o devido preparo e com as reduções feitas pelas propostas e práticas de intervenção, a dor se mantém antes, durante e depois da expulsão dos camponeses do espaço onde se haviam estabelecido de maneira afetiva.
O texto, depois de lido, continua incomodando e instigando reflexões sobre os efeitos de grandes projetos sobre populações tratadas como números frios e amorfos.
É uma contribuição ao processo de construção de um desenvolvimento que leve em conta pessoas e grupos sociais com um componente inerente ao ser humano: o sentimento.
A tese é de que embora sejam feitos registros do sofrimento nos processos de deslocamento compulsório, não lhe é dado tratamento teórico e analítico no campo acadêmico.
Cobra, portanto, dos acadêmicos, investimento na compreensão do sofrimento humano como uma dimensão a ser explorada e tratada, recuperando a mais nobre função da produção acadêmica, qual seja a de estar a serviço do ser humano.
Mais informações:
SANTOS, Sonia Maria Simões Barbosa Magalhães. Lamento e dor. Uma análise sócio antropológica do deslocamento compulsório provocado pela construção de barragens. Belém/Villetaneuse: PPGCS/UFPA e CERAL/Université Paris Nord, 2007. Tese de doutorado em co-tutela sob orientação de Jean Hebette e Pierre Teisserenc.
Fonte: Jornal de Ciência e-mail 3429, de 14 de Janeiro de 2008.